segunda-feira, 18 de agosto de 2014

D. Manuel I e o Montijo (3)

Montijo Visto Pelo Foral de 1514


No séc.XVI, o rio assumiu  importância fundamental para o desenvolvimento de Aldeia Galega do Ribatejo, cuja localização a tornou uma porta privilegiada de acesso à capital, com reflexos benignos no desenvolvimento dos transportes, das estalagens e do comércio, e disto nos dá conta o Foral de 15 de Setembro de 1514.
Imagem de Pier Baldi, séc. XVII. O
 cais de embarque não seria muito diferente , no séc. XV.


É Aldeia Galega do Ribatejo, que, em 1930, mudou o nome para Montijo, povoação antiquíssima, cujos registos remontam ao séc. XIII.
O concelho pertenceu à Ordem de Santiago de Espada, cuja sede se localizou em Palmela, e ganhou real autonomia, em 11 de Janeiro de 1540, quando o Mestre da Ordem confirmou a separação de Aldeia Galega de Alcochete e se pôs termo ao concelho de Sabonha.

Ao longo da sua História, Aldeia Galega recebeu várias prerrogativas reais e, em 14 de Setembro de 1514, D. Manuel I, O Venturoso, concedeu-lhe Foral.
Foral ou Carta de Foral é um diploma dado pelo rei, ou por um senhorio laico ou eclesiástico, a determinada terra, contendo normas que disciplinam as relações dos seus povoadores ou habitantes entre si e destes com a entidade outorgante.
Diz Francisco Ribeiro da Silva que «Uma leitura rápida dos forais leva facilmente à ideia de que os beneficiários dos tributos eram o rei, a igreja, os senhorios laicos ou eclesiásticos a quem o rei outrora fizera doação. Raramente são os concelhos, o que mais uma vez e até certo ponto contraria a ideia feita, mas não verdadeira, de que os forais foram dados em favor dos municípios ou do municipalismo.»

O Foral que D. Manuel I outorgou a Aldeia Galega do Ribatejo é um documento  onde se fixam os direitos e os tributos a pagar ao(s) senhorio(s), mas também as isenções e privilégios, e, concomitantemente, se regularizam, sobretudo, as estalagens, os transportes e as portagens - passagem e venda de mercadorias.

A primeva Aldeia Galega era, essencialmente, uma povoação rural, cujo núcleo principal se localizava a oriente da vila, onde se edificou a Igreja de S. Sebastião, primeira Igreja do concelho.
No rio que a banhava, Aldeia Galega procurava o peixe, o sal e a força motriz para mover os moinhos, que demonstram a intensa actividade moaogeira da localidade.
No século XIV, estava construído o porto novo de Aldeia Galega, que passou a concorrer com os portos de  Alhos Vedros e do Barreiro e se transformou, paulatinamente, na principal porta de acesso a Lisboa e passagem obrigatória para quem demandasse o sul do País ou o estrangeiro.
A vila, até então rural por excelência, descobria no rio um novo pólo de desenvolvimento, baseado no transporte de gentes e mercadorias. Quando lhe foi outorgado foral, Aldeia galega corria em direcção rio, sem ter abandonado o campo.

O intenso movimento de pesssoas e de bens originou o estabelecimento de estalagens e o desenvolvimento dos transportes de pessoas e mercadorias, que não escaparam à atenção dos inquiridores que o Rei enviara a Aldeia Galega, assim como a «todollos lugares do Reyno».

O Foral liberalizou o estabelecimento de estalagens e proibiu, por um lado, «que no ditto lugar (Aldeia Galega)nam haja estalagem privilligiada assy da ordem como do conselho», e, por outro,  autorizou que qualquer pessoa pudesse hospedar em sua casa e dar cama e de comer a «quaisquer pessoas, assim de graça como por dinheiro, assim de noite como de dia».
Quanto às bestas, em que as pessoas se faziam transportar assim como os seus bens, tinham de, em primeiro lugar, permanecer na estalagem, mas «quando na ditta estalagem não poderem bem caber as bestas declaramos que se possam por aquella vez agasalhar onde quiserem assy de graça como por dinheyro».
De tal modo se desenvolveram as estalagens que, no século XVIII, as estalagens de Aldeia Galega do Ribatejo ainda eram consideradas das melhores do País.

A postura municipl, que regulava a «barca da carreira», não era respeitada, reinando assim uma forte indisciplina no que concerne ao cumprimento de horários e  à prática de preços, causando a «desordenança das barcas» muitos transtornos e despesas aos passageiros

Por isso, o Foral determinou o cumprimento da dita postura e que o «barco da carreira» observasse os horários, quer houvesse muitos ou poucos passageiros, não podendo ser alterados os horários e os preços em função do número de passageiros e/ou de mercadorias a transportar.
À hora (maré) prevista, os barqueiros eram obrigados a partir, a «tanger o búzio e a cumprir todos os costumes e obrigações da dita passagem.»
Porém, se a «barca de carreira não pudesse levar mais gente nem cousas», e aproveitando a mesma maré, era permitido ao barqueiro da barca seguinte negociar livremente o preço da passagem e do transporte de mercadorias, mas, caso as partes não alcançassem acordo, caberia aos juizes ordenarem que partisse logo que houvesse maré de feição, pagando-lhe «por toda viagem daquella vez duzentos reaes somente sem mais outra nenhuma cousa por ora seja cõ muytos ou com poucos (passageiros e mercadorias)».

Além de densificar a postura municpal, o Foral  estabeleceu um regime sancionatório para os barqueiros e arrais incumpridores, sujeitando-os a uma multa de dez cruzados pela violação do horário e dos preços.

A importância de Aldeia Galega como porto principal para a ligação da capital do Reino ao sul do País e ao estrangeiro acabou por ser confirmada e ganhou acrescida projecção quando o Correio-Mor, Luís Afonso, estabeleceu ali a Posta, carreira de Correios para o sul do país e para a fronteira espanhola, em 1533.

Na actualidade, olhando-se para a época em que o Foral lhe foi atribuído, alcança-se Aldeia Galega do Ribatejo como um importante entreposto comercial. Ali aportavam as mais desvairadas gentes, ali comerciavam, ali pernoitavam, dali partiam para outras paragens com as suas mercadorias, sobretudo para a capital do Reino, que se animava  com a empresa dos Descobrimentos, apesar da peste que, por vezes, a assolava. Não havia uma feira em Aldegalega, mas tão-só um agitado e intenso comércio.

O exame minucioso das mercadorias e das pessoas que deviam ou não pagar portagem, das que estavam isentas e das condições que fundamentavam essa isenção acaba por ocupar substancialmente o conteúdo do foral. Mas não é tema que seja por ora e aqui abordado.

Que bens e pessoas se transicionavam em Aldeia Galega do Ribatejo, alguns dos quais se destinavam ao abastecimento das naus que «davam novos mundo ao mundo»?

Através das taxas de portagens previstas no foral  é possível identificá-los:
Pão, vinho, sal, fruta verde, hortaliça,  legumes, pescado, marisco, queijos secos, manteiga salgada, trigo, centeio, cevada, milho, painço, linhaça, aveia, vinagre, melões, queijadas, biscoitos, farelos,  castanhas e nozes verdes e secas, ameixas passadas, amêndoas, pinhões por britar, avelãs, boletas, mostarda, lentilhas, legumes secos, cebolas secas, alhos, sumagre1,  azeite, mel, unto.
Especiarias, boticarias, tinturas e afins.
Panos de lã, linho, seda e algodão.
Couros curtidos ou por curtir, calçado, peles de coelho ou cordeiro e de qualquer outra pelitaria.
Cera e cevo.
Prata lavrada, aço, estanho, ferro, telha e tijolo, louça de barro, vidrada ou não, objectos de pedra, de barro e de pau.
Objectos feitos de esparto, palma ou junco. Vassouras
Erva, vides, canas, carqueja, tojo, palha e lenha.
Pez, resina, breu, alcatrão, cal e sabão.
Escravo ou escrava ainda que seja parida.

Estas eram as principais mercadorias à disposição dos nossos avoengos, embora nos choque, hoje, considerar uma pessoa (escravo) mercadoria.

A pesca, ao contrário do que poderíamos presumir nos nossos dias, não é assunto substantivo do Foral, indiciando que não terá sido a actividade principal ou única de quem a ela se dedicava.
O Foral não se refere aos pescadores e nele encontrámos um único parágrafo referente ao pescado, que assim determina: «Paguaze do pescado sua dizema e dr.to ordenado, cõ declaração que do que tomarem para comer não pagarão se não dizema a D's e do que tomarem cõ rede pee aynda que seja ia pera vender pagarão soomente a dizema velha e não a nova. E do que tomarem aa fisga, ou aa mãao nam paguaram dr.to Quando os pescadores sayrem, cõ o seu pescado fresco em terra averão delle seu conduto por aquelle dia que ouverem hy de repousar sem delle pagarem dizema.»

Isto é, o pescado estava sujeito à dízima, que consistiria em 10% do valor do pescado. Porém, «do que (os pescadores) tomarem para comer não pagarão senão se não dizema a D's». A dízima a Deus valia 8,3% do pescado, ou seja, por cada doze peixes, um era para a Igreja.

«Dízima velha e não a nova» pagariam os que pescassem com rede-pé (rede de arrastar), ainda que fosse para vender.
Seguindo Francisco Ribeiro da Silva, a dízima velha do pescado trazido às terras da Ordem de Santiago por pescadores residentes nas áreas da mesma Ordem pertencia à dita Ordem; a dízima nova era paga ao rei.
Aldeia Galega do Ribatejo só estava sujeita à dízima velha, ao contrário de outras localidades em que todo o peixe pescado estava sujeito a uma dupla dízima: a dízima velha e a dízima nova, no montante de cerca de 20%.

Quem pescasse com meios rudimentares, “à fisga ou à mão (cana ou linha) “estava isento de dízima”.

Por fim, o Foral estabelece que «Quando os pescadores sayrem, cõ o seu pescado fresco em terra averão delle seu conduto por aquelle dia que ouverem hy de repousar sem delle pagarem dizema.»
Conduto era o privilégio pelo qual os mestres dos navios e os pescadores eram autorizados a retirar do pescado fresco, que trouxessem para vender, uma porção para a sua alimentação de cada dia, de acordo com o número de pessoas que viessem no navio.

O pescado estava ainda sujeito à taxa de portagem a pagar por «homens de fora della que hy trouxerem cousas de fora a vender ou as comprarem hi e tirarem para fora da Villa e termo», nomeadamente, pescado e marisco.

No século XVI, o rio assumiu importância fundamental para o desenvolvimento de Aldeia Galega do Ribatejo, cuja localização a tornou uma porta privilegiada de acesso à capital, com reflexos benignos no desenvolvimento dos transportes, das estalagens e do comércio, e disto nos dá conta o Foral de 15 de Setembro de 1514.
Ao lado de uma comunidade rural, «os homens trabalhadores», afirmava-se uma outra, a dos mareantes. Esta construiu a Capela de Nossa Senhora da Conceição, na Igreja do Divino Espírito Santo, em 1575; aquela instituiu, no mesmo templo, a Capela de Nossa Senhora da Purificação, em 1607.
Assim se ergueu Montijo.


(1) - Sumagre – Arbusto cujas folhas e casca eram utilizadas no curtimento de couros e peles e como tintureira na  indústria têxtil. Pode também ser usado como condimento, extraído dos frutos.


Ruky Luky

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

D. Manuel I e Aldeia Galega do Ribatejo (2)

Os Enigmas do Foral de Aldeia Galega do Ribatejo


Capitular do Foral dado por D. Manuel I a Alcochete e a Aldeia Galega do Ribatejo

1. Em 15 de Setembro de 1514, D. Manuel I, “por graça de Deus Rei de Portugal e dos Algarves, daquém e dalém mar em África e senhor da Guiné e da conquista, navegação e comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e da Índia”, deu foral a Aldeia Galega do Ribatejo.
Cinco meses depois, em 17 de Janeiro de 1515, o mesmo monarca outorgou foral conjunto às vilas de Alcochete e Aldeia Galega.

Ignoram-se os fundamentos da decisão, que constitui um dos enigmas da História de Aldeia Galega/Montijo.

Aldeia Galega do Ribatejo e Alcochete integravam o concelho do Ribatejo, que, no século XIII, estava sediado em Sabonha e em Alhos Vedros.
Nos finais do séc. XIV e princípio do séc. XV, Sabonha e Alhos Vedros evoluíram para concelhos autónomos, extinguindo-se o concelho do Ribatejo.
Além daquelas duas povoações, Montijo, Samouco, Lançada e Sarilhos, então minúsculas póvoas, passaram a integrar também o concelho de Sabonha, sede paroquial.

Apesar de Aldeia Galega do Ribatejo pertencer ao concelho de Sabonha, não impediu que os Reis lhe concedessem prerrogativas de lugar exclusivas dos seus moradores.
Assim, D. Fernando, em 1381, fez «graça e mercê aos vizinhos de Aldeia Galega e seu Termo» para que não fossem obrigados a «pagar jugada de pão nem de vinho senão pela condição e maneira que pagavam em tempo de outros reis que ante de nós foram».
Mais tarde, em 1385, D. João I confirmou «todos os privilégios e liberdades que foram dados e outorgados por el-Rei Dom Afonso e por el-Rei Dom Pedro e por el-Rei D. Fernando» e «todos os seus bons usos e costumes e foros que sempre houveram e costumaram em tempos de outros Reis».

Defende Joaquim Tapadinhas, a quem muito devem a História e a Cultura de Montijo, que estes documentos confirmam a hipótese de que Aldeia Galega tivesse foral já no século XIV, e, nesse caso, «o foral de 15 de Setembro de 1514, doado por D. Manuel I, tratar-se-ia de um foral novo, por conseguinte uma confirmação.» (In “Aldeia Galega No Tempo Dos Descobrimentos” – 2.ª Edição).
O autor fundamenta a sua hipótese na referência textual à jugada, no documento emanado de D. Fernando, porque, «de acordo com Joel Serrão, no seu Dicionário de História de Portugal, segundo as «Ordenações do Reino», a jugada era um direito real que os reis reservavam para si, nas terras a quem davam forais


Freguesia de S. Francisco, Concelho de Alcochete, onde outrora se localizou Sabonha.

Ora, atendendo a que a instituição foralenga fora posta também ao serviço do povoamento, oferecendo-se privilégios ao povoador de um lugar como forma de atracção, e atendendo ao povoamento de Aldeia Galega, não se poderá encontrar aqui, também, mais um elemento que reforça a hipótese aventada por Joaquim Tapadinhas?

Aceitando-se a bondade da hipótese de Joaquim Tapadinhas, é legítimo admitir que Aldeia Galega se afirmava no seio do concelho de Sabonha, ganhando crescente autonomia e importância em relação às demais localidades, mantendo, contudo, a sua ligação umbilical a Sabonha.

2. Em 15 de Setembro de 1514, D. Manuel I deu foral a Aldeia Galega do Ribatejo. Cinco meses depois, em 17 de Janeiro de 1515, o mesmo monarca outorgou foral conjunto às vilas de Alcochete e Aldeia Galega.
Por que é que foram dados dois forais a Aldeia Galega do Ribatejo?

Mário Balseiro, na sua Monografia do Concelho de Alcochete (Séculos XII-XVI) interroga-se também: «O que é que, na verdade , se terá passado: com o segundo foral ter-se-á pretendido anular o primeiro – hipótese que já foi defendida por João Luís da Cruz? Ou terá havido erro do copista?
Em rigor e com os documentos chegados até nós é muito difícil sabê-lo, uma vez que na Torre do Tombo encontram-se guardados os processos realizados para alguns dos forais manuelinos da região – como os de Palmela e de Setúbal -, mas não os de Alcochete e de Aldeia Galega», conclui aquele dedicado Investigador.

Certo é que a Câmara Municipal de Alcochete guarda o exemplar do Foral Manuelino de 17 de Janeiro de 1515, mas a Câmara Municipal de Montijo (Aldeia Galega do Ribatejo) não tem nenhum dos exemplares dos forais que lhe foram outorgados em 1514 e 1515.
Conhece-se a existência do Foral de 1514 pelo treslado feito, um século depois, por  Mateus de Aguiar.

Apesar de terem sido doados forais a Aldeia Galega do Ribatejo e Alcochete ambas as povoações mantiveram-se agregadas e integradas no concelho de Sabonha.

Segundo o livro intitulado “Das regalias da câmara d’Aldegallega”, citado pelo Padre Manuel Frederico Ribeiro da Costa, (in “Narrativa Histórica da Imagem de Nossa Senhora de Atalaia”), só em 17 de Novembro de 1539, as duas vilas «dividiram e separaram as jurisdições  e ofícios» e os Juízes Ordinários, vereadores, procuradores do concelho e outros homens bons do povo de ambas as vilas decidiram amigavelmente «que a vila de Alcochete  e moradores dela fiquem com a igreja de Santa Maria de Sobonha e administração dela com todos os seus ornamentos e cousas, contando que trespassem por todo o Direito, posse e propriedade que sempre tiveram e tinham na ermida de Nossa Senhora de Atalaia e administração dela».

O acordo foi submetido pela Câmara de Aldeia Galega a D. Jorge, Mestre da Ordem de Santiago, que o confirmou, em 11 de Janeiro de 1540. A título de curiosidade, refira-se que o documento «Vay sem sello por falta de cera…».

Apesar da composição amigável de interesses entre as duas câmaras, mais tarde, teve de ser dirimido um conflito originado pelas dúvidas surgidas à volta da demarcação dos termos de Aldeia Galega.


Largo da Misericórdia (hoje, Praça 1.º de Maio). Além da Igreja da Santa Casa da Misericórdia, ali se situou a Câmara Municipal  e o Pelourinho. Era o grande rossio de Aldeia Galega do Ribatejo, o centro cívico por excelência, quando foi outorgado o Foral. Repare-se no poço «de que bebe todo o povo», no lado esquerdo da foto, que já existia no século XV.

Com a extinção do concelho de Sabonha, após a separação de Aldeia Galega de Alcochete, estas povoações alcançaram, finalmente, a sua autonomia.
Qual dos forais estava em vigor?

É líquido que Alcohete guardava o Foral de 1515, pois não tivera outro.
E Aldeia Galega do Ribatejo, que foral aplicava: o de 1514 ou o de 1515? Teria este revogado aquele e apesar de separadas ambas as vilas respeitavam idêntico foral?

Há um facto que nos leva a presumir que o Foral de 1514 vigorou sempre em Aldeia Galega do Ribatejo.

Em 1640, a Ordem solicitou à Câmara de Aldeia Galega que apresentasse o seu foral ao escrivão da Ordem, que estava hospedado em Alcochete. O foral, que foi presente a Mateus de Aguiar, foi o de 15 de Setembro de 1514, que o tresladou, na vila de Alcochete, no dia 14 de Julho de 1614.
Como registou o “escrivão dos tombos, das comendas da mesa mestral da Odem de cavalaria do Mestrado de Santiago»: «tresladei do próprio foral que está no cartório da dita câmara de Aldeia Galega(…). E o dito foral tornei ao escrivão da dita câmara.»

Havendo foral conjunto, não nos parece curial que a Ordem se preocupasse em tresladar um documento que estaria revogado há mais de cem anos. Com que fim?
Terá Aldeia Galega do Ribatejo, que alcançara preponderância face às demais povoações, tomado o foral de 1514 como marco da sua autonomia e, não havendo diferenças substanciais entre ambos os diplomas, o continuou a respeitar? Em bom rigor só os documentos poderiam responder. Neste caso, a História emudeceu.

Os forais de Montijo desapareceram, assim como se perderam outros documentos importantíssimos para a História da velha Aldeia Galega do Ribatejo/Montijo. Vicissitudes várias terão contribuído para isso, mas de nenhuma temos indícios. Contudo, a título de exemplo acerca do respeito que mereciam os “papéis velhos”, como muitas vezes foram encarados e tratados, conte-se que o Foral Manuelino de Canha foi encontrado num sótão, dentro de um armário, entre ferramentas e outros apetrechos, no início da década de oitenta do século XX.

Ruky Luky


quarta-feira, 6 de agosto de 2014

D. Manuel I e Aldeia Galega do Ribatejo (1)

Pescadores e Barqueiros


Aldeia Galega do Ribatejo foi uma das 237 localidades a quem D. Manuel I outorgou foral, em 1514. Entre 1500 e 1520 seriam dados 589 forais.

Foral ou carta de foral é, na esteira do Dicionário da História de Portugal, de Joel Serrão, «o diploma concedido pelo rei, ou por um senhorio laico ou eclesiástico, a determinada terra, contendo normas que disciplinam as relações dos seus povoadores ou habitantes entre si e destes com a entidade outorgante.»

Por Carta Régia de 22 de Novembro de 1497, D. Manuel I «ordenou que se recolhessem de todas as cidades, vilas e lugares, todos os forais, tombos e escrituras, que sobre este assunto houvesse, em os próprios originais, para se ordenarem outros novos», atendendo aos abusos que se haviam introduzido nos forais, denunciando então os municípios as opressões de que eram vítimas.

Francisco Nunes Franklin, na sua obra “MEMÓRIA PARA SERVIR DE ÍNDICE DOS FORAES DAS TERRAS DO REINO DE PORTUGAL E SEUS DOMÍNIOS”, classificou os forais em: «Forais assim antigos, novos e novíssimos: na classe dos primeiros entram todos os que foram dados desde o princípio da Monarquia, e até mesmo no reinado do Sr. Rei D. Manoel, os que se expediram antes da Reforma (…); à classe dos segundos pertencem todos aqueles que se expediram na sobredita reforma do SR. Rei D. Manoel; os Forais novíssimos, isto é, os que se deram depois.»

Assim, forais antigos são os que foram dados desde o princípio da Monarquia e antes da reforma de D. Manuel I; forais novos, os que se expediram na reforma manuelina;  e forais novíssimos, aqueles que foram dados posteriormente.

Com Reforma do rei D. Manuel I, os forais perderam o carácter de estatutos político-concelhios, matéria que passou a ser regulada pela lei geral, e preocuparam-se em fixar os encargos e os foros a pagar pelos concelhos ao rei e aos donatários. Por outro lado, transformaram-se também num instrumento útil à centralização do poder régio.

O actual concelho de Montijo regista a existência de três forais – O Foral de Aldeia Galega do Ribatejo (1514); O Foral de Alcochete e Aldeia Galega do Ribatejo (1515); e o Foral de Canha (1516). Perdeu-se o primeiro.

Por ora, analisaremos tão-só dois aspectos do Foral de Aldeia Galega do Ribatejo, realçados no subtítulo.

D. Manuel I deu foral a Aldeia Galega do Ribatejo, em 15 de Setembro de 1514. Dele apenas se conhece o treslado feito por Mateus de Aguiar, em 1614. Afiança o escrivão que o treslado foi feito «do próprio foral que está no cartório da dita Câmara d’Aldegalega do Ribatejo e com ele este concertei com o Juiz dos ditos tombos e com o escrivão da dita câmara.»

O Foral é parco no que respeita à pesca e aos pescadores, registando, em essência que o pescado está sujeito à dízima, à excepção «do que tomarem para comer», e que os pescadores que «saírem com o seu pescado fresco em terra haverão dele seu conduto por aquele dia que houverem de repousar sem dele pagarem dízima.»

Quanto aos barqueiros, o Foral reconhece Aldeia Galega do Ribatejo como o principal porto de passagem para Lisboa e os inconvenientes e as despesas que resultam para os passageiros «pela desordenança das barcas» e, por isso, determina que se cumpra a postura municipal existente.

Assim, «a barca a que chamam da carreira» devia cumprir o calendário e o horário estabelecidos, partindo no momento da maré, com os passageiros que ali se apresentassem, «muitos ou poucos que ao tal tempo achar, sem mais aguardar outra maré ou tempo, nem mesmo levar mais dinheiro nem preço por pessoa nem (por) coisas». Deste modo, fosse a barca com muitos ou poucos passageiros, o barqueiro estava obrigado «a tanger o seu búzio à hora (marcada) e cumprir todos os outros costumes e obrigações da dita passagem. Isto é, o Foral densificou a postura existente, obrigando a que se cumprisse o horário e respeitasse o preço de passagem, que não poderia oscilar em razão do número de passageiros ou da carga transportada. Houvesse «muitos ou poucos» o preço a pagar seria sempre o mesmo, não podendo variar consoante o número de passageiros ou da carga transportada.

Caso a lotação da carreira estivesse esgotada, previa o Foral que «então outras barcas se poderão concertar com as partes que nelas quiserem embarcar», mas, se não houvesse acordo entre as partes, então «os juízes farão partir a qualquer tempo e hora, em que se puder navegar, pagando por toda a viagem duzentos reais somente, sem mais outra coisa nenhuma ora seja com muitos ou com poucos.»

E para que não se continuasse a verificar a «desordenança das barcas», o Foral introduziu um aditamento à postura municipal, estatuindo pesadas multas para os barqueiros ou arrais das ditas barcas da carreira que «não partirem logo à maré».

Avulta destas disposições do Foral, a necessidade de se disciplinar a carreira, pela importância assumida pela ligação Aldeia Galega a Lisboa, e vice-versa, principal porto de acesso ao sul do País e ao estrangeiro.

A carreira Aldeia Galega/lisboa/Aldeia Galega foi sangue vivo a animar o coração da localidade.

Quando, no século XXI, ignorando-se as lições e a sabedoria da História, se deslocalizou o cais para o Seixalinho, Montijo deixou de ouvir tanger o búzio e feneceu. 

Ruky Luky