quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Aspectos da Vida em Aldegalega do Ribatejo

Largo do Poço. Largo da Misericórida. Actual Praça 1.º de Maio

«Ai, vida!
Ai, vida
Louco desejo,
Assim vivida!
Junto do Tejo.»

    Joaquim Serra

Não cuidemos de precisar as datas. Situemo-nos num tempo oscilante entre os fi­nais do século XIX e as primeiras três décadas do século XX, em Aldegalega do Ribatejo.

As águas do tejo correm serenas e límpidas. A azáfama é cons­tante: pescadores, marítimos e descarregadores animam o cais.
Cinquenta fragatas asseguram a ligação a Lisboa e um barco a vapor faz seis carreiras diárias entre Aldegalega e a capital.
O Bairro dos Pescadores, de casario baixo e modesto bordeja a margem do rio.
O rio é rico, a classe pobre. «Há corvinas no rio, como pe­dras na calçada», exclama, contente,  um pescador. Nas margens, ranchos de raparigas apanham ostras, que serão disputadas noutros mercados.
Os moinhos de maré cum­prem o seu ritual.
Mas, o rio não é só lugar de trabalho. Se a labuta, no Cais das Faluas, não permite o folguedo, em dias de caní­cula, os mais afoitos vão a banhos à Ponte dos Vapores. E de tal modo o fazem, jovens e adultos, que D. Carlos Pe­reira Coutinho, então o administrador do Concelho de Aldegalega do Ribatejo determiou que:
«Convindo cohibir o abuso muitas vezes observado na Ponte dos Vapores desta Villa, onde a quaisquer horas do dia aparecem indivíduos, que a tí­tulo de tomarem banho se apresentam em completo esta­do de nudez, escandalizando com tal procedimento as pes­soas honestas que ali concor­rem e offendendo a moral e a decência pública; E convin­do, outrosi, obstar a que al­guns menores, por incúria dos paes ou das pessoas a cujos cuidados ficaram entregues, se metam nadando, diante dos vapores e de outros barcos, prejudicando a navegação e expondo-se a perigos que de certo desconhecem; Faço sa­ber:
1. É prohibido a quaisquer indivíduos tomar banhos nas praias ou cais d'esta villa em estado de completa e indeco­rosa nudez;
2.° Para que a navegação não seja prejudicada e, sobre­tudo, para evitar qualquer de­sastre fica prohibido desde hoje tomar banho na Ponte dos Vapores.»

Além dos indivíduos visados pelo Edital, conta o Ti Zé da Areia que grupos de senhoras utili­zavam o Moinho de Maré co­mo balneário e banhavam-se na parte mais escondida da Caldeira.
Mas o rio de águas límpidas era uma forte tentação e um lugar para a prática de desporto. Celebri­zaram-se, as provas de natação entre o Moinho e a Ponte dos Vapores.

«Forçoso é confessar, que [em 1850]não era próspero o seu estado económico, e que a villa apresentava um as­pecto pouco edificante. No entanto, a julgarmos pelo nú­mero de festas que se realiza­vam durante o ano, parece que o povo não se considerava infeliz. Havia, então as se­guintes festas: a da Senhora da Purificação, a de S. Pedro, a da Senhora da Piedade e a da Senhora da Conceição. Além disto, os pescadores costumavam organizar um círioà Senhora da Atalaia, e os manatas também dois outros, à mesma Senhora, sendo os três círios ordinariamente muito concorridos.»
Logo no primeiro dia do ano, fazia-se uma festa, a que chamavam de Menino Jesus.»

Fragata de transporte de fardos de cortiça para Lisboa. No dealbar da segunda década do século XX, a acreditar no repórter do “Diário de Notícias”,  «importan­tes fábricas de cortiça cons­troem-se dia a dia».
«É uma terra de amores
onde há sol, moscas e flo­res,
e tanganhos
De Inver­no, quando há chuveiros,
Te­mos rios e ribeiros para ba­nhos». (1)

 A vila estava dividida em quatro núcleos populacionais: o dos pescadores, ocupando o seu bairro tradicional; o dos marítimos, que ocupava algumas áreas da Calçada; o «dos homens da terra», agricultores e fazendeiros que habitavam a zona de S. Sebastião (Cemitério); e o dos comerciantes, que ocupa­va o centro da vila.

Na Al­deia Velha e um pouco por toda a vila estão perto de vin­te “quintais” onde  se «matam por ano quarenta mil porcos, para exportação; e em mais de 100 casas de chachineiros, se apromtam as carnes, ver­des e ensacadas».

Se, no princípio do século XX, a indústria da carne de porco é já uma das principais fontes de riqueza de Aldegalega, no dealbar da segunda década, a acreditar no repórter do “Diário de Notícias” as importan­tes fábricas de cortiça cons­troem-se dia a dia.

No entanto, convém recor­dar que a construção do Ca­minho de Ferro, a partir do Barreito, para o Sul, cujas obras se iniciaram em 1855, veio desviar a ligação que se fazia através de Aldegalega e lançar a vila numa profunda crise económica. Porém, ao visitá-la, em 1904, Alberto Pi­mentel afirmou que «Aldea Gallega é (...) uma das mais ricas e desenvolvidas povoa­ções do Ribatejo. ( ... ) Tinha razão o Dr. Manuel de Arria­ra quando me asseverou que na vila não havia pedin­tes».

No mesmo sentido testemunhara já José de Sousa Rama: «os habitantes (devido à crise económica) em lugar de implorarem socorro dos governos preferiram aumentar os esforços e procurar novos meios de trabalho, havendo até quem trocasse a enxada pelo saco de batatas, e o leme pelo cabaz de carne ensaca­da... e, sem outro auxílio  que  a sua inteligência e probidade (conseguem), com o tempo e muita perseverança, torna­rem-se respeitáveis negociantes e possuidores de bons meios de fortuna».

O desenvolvimento econó­mico da vila não significou ri­queza e bem-estar para todos os seus 8129 habitantes.

A pobreza impera e origina os três dos mais sublimes casos de solidariedade que a história desta localidade regista: a doa­ção de José Joaquim Marques para a construção do Asilo de S. José, para albergar as pes­soas idosas desvalidas; a criação do Orfanato pelo médico e benemérito Dr. César Ven­tura, que tinha o seu con­sultório na Rua Direita, n.os 64 e 66, e impresso nas suas receitas «grátis aos pobres», e a acção do Dr. Manuel da Cruz Jr., que cumpre todo sacerdócio de médico dedi­cando-se aos mais pobres.

A eclosão da primeira Guerra Mundial, em que Por­tugal participou, e os filhos de Aldegalega se viram envolvi­dos no «front», vai acentuar mais o desnível existente entre as várias classes sociais de Aldegalega.



Entre os pregões que acordavam e alegravam Aldegalega um era o mais esperado: o do homem da água, que passava com a sua carroça a vender água po­tável a 5 réis a bilha.












«Todos tapam suas ventas
E pelas ruas sebentas,
passa a pipa da cerveja.
Pelas portas espalha­das,
com arames concertadas,
Muitas tijelas estão.
Que ri­co cheiro que têm...» (1).

 
Assim se mantém a nossa Aldegalega, em 1927.
Pequena vila, de ruas planas e largas, anima-se com as carroças que a atravessam, com o comércio da Rua Direi­ta e Pç. Serpa Pinto (hoje, Praça da Repú­blica), ouve o martelar dos ferreiros, tanoeiros e funilei­ros, transforma as farmácias em tertúlias e sente o mau cheiro que invade a vila.
Não há esgotos. Os despejos domésticos cor­rem pelas ruas, em reganos, valas que correm junto aos prédios.
Os dejectos são recolhidos pelo homem da pipa.

«Ainda me lembro do Ti Manel da Pipa. O meu pai pagava-lhe $50 por semana para ele recolher a tijela. Vi­nha sempre altas horas da noite, com a sua carroça e uma grande pipa. Penso que ele passava por nossa casa, ali à Calçada, por volta das 2 ho­ras da manhã). Era um pive­te...» recordava, em 1991, a senhora Ale­xandrina Soeiro, (81 anos).
Este estado de coisas man­tém-se ao longo dos anos, de­nunciando, o “Notícias de Montijo – Semanário Regionalista”, em 15 de Maio de 1932, «o fétido repugnan­tíssimo das sargetas por toda esta vila fora.
0 pessoal encarregado de lhes deitar água, faz esse ser­viço à Ia diable; a canzoada bebe a pouca água que esse pessoal lhes deita e o calor vai fazendo das suas...»
Se, durante o dia, os al­deanos têm de ver bem onde põem os pés, à noite, têm de ter cuidados redobrados por­que a vila está mal ilumina­da. Os 150 candeeiros a petró­leo ou a gás, que virão a ser  paulatinamente substituídos pelos de luz eléc­trica, não respondem aos re­ceios da população se afoitar a noite.
Entre os pregões que acordavam e alegravam Aldegalega um era o mais esperado: o do homem da água, que passava com a sua carroça a vender água po­tável a 5 réis a bilha. Estes comerciantes, alguns com pu­blicidade paga nos jornais lo­cais [Prefira a Água do Car­ro Amarelo], depois de terem aplacado a sede aos seus con­terrâneos eram obrigados a manter as pipas cheias, du­rante a noite, para prestar apoio a eventuais incêndios.

A par de uma intensa vida política, Aldegalega tem uma vida social e cultural de re­levo, sediada nas associações existentes: Sociedade Filarmónica 1.° de Dezembro, Grupo Mu­sical Baltazar Manuel Valen­te, que depois se denominou de Musical Clube Al­fredo Keil e a Banda Demo­crática 2 de Janeiro. O apare­cimento desta instituição trouxe um novo fôlego ao panorama Cultural de Aldegalega.
Além destas associações, o aldeano podia divertir-se no teatro ou no animatógrafo, excursionar ou vibrar nas touradas, ir ao futebol ou as­sistir ao Concurso da Eleição da Miss Mercado, dançar, ao fim de semana, até de madrugada, e, em chegando a Primavera, partir, montado em burros ou carroças, para um pic-nic, na praia ou no campo.

 
(1)      Joaquim Serra

 
Ruky Luky

 

 

 

 

 

 

 

2 comentários:

  1. Só uma perguntinha? Também não existiam as festas de São Sebastião? A minha avó tem um copo referente a esse evento. Ainda pensava que fossem algumas comemorações anteriores às festas de São Pedro, mas com aquilo que tenho estado a aprender, não me parece. Qual é a sua opinião??

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  2. Adorei ler e ver as fotos. Parabéns por mais um excelentre trabalho.

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