sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

José Joaquim Fialho Mota Caria [14 de Dezembro de 1926 – 3 de Agosto de 2011]

Eu fui a asa de um Sonho,
Pausas,
Silêncios
E Nada!

        J.J.Caria

 José Joaquim Fialho Mota Caria nasceu, em Aldegalega do Ribatejo, em 14 de Dezembro de 1926, às nove horas e trinta minutos, na Rua Tenente Valadim.
Filho de Joaquim Freire Caria, renomado comerciante de Montijo, e de Maria José Mota Caria, doméstica, fez os seus estudos primários, em Montijo, no Colégio Esperança, de Alice e Bernardo Costa, professores primários oriundos dos Açores.
Terminados os estudos em Montijo, José Joaquim Mota Caria ingressou na Escola Académica de Lisboa, onde concluiu o Curso Comercial. Posteriormente, frequentou, durante dois anos, o Instituto Comercial de Lisboa, cujo curso não concluiu.
Em 1950, concluiu o curso de enfermagem da Escola Artur Ravara (Hospital dos Capuchos). Naquele ano, no dia 14 de Dezembro, casou-se com Helena Josefa Taborda, na Capela do Senhor dos Aflitos, propriedade da sua família.
Empresário de seguros, na área de acidentes de trabalho, desenvolveu uma profícua actividade, tornando a sua Clínica de Acidentes de Trabalho uma das mais prestigiadas de Montijo.
Toda a sua actividade profissional é dedicada aos seguros, que abraça com competência e dedicação até ao fim dos seus dias, apesar de, formalmente, se ter reformado em 1993.
Entre 1964 e 1971, exerceu o cargo de vereador da Câmara Municipal de Montijo, nos mandatos de António João Serra Júnior e Francisco António Faria, tendo sob sua responsabilidade os pelouros da Cultura, a Comissão de Toponímia, de que era presidente, e a ligação, como delegado da Câmara, à Comissão das Festas de S. Pedro.
A José Joaquim Mota Caria e ao seu acrisolado amor por Montijo, se fica a dever, também, a doação ao Município da imagem do Cristo crucificado, peça de valor incalculável esculpida em marfim, trabalho indo-português do Séc. XVII, que constitui, hoje, a peça mais rica do seu património, única no País, inigualável na Europa, e que tem sido admirada pelos mais talentosos especialistas de arte sacra.
Serenamente, José Joaquim Mota Caria passeava pelas ruas da sua cidade deixando transparecer, como um dia confessou, «a serenidade própria dos que crêem, dos que têm Fé, essa força que dá intenção, rumo e propósito à minha vida. [Porque] Deus é a chave de todas as respostas… e a vida é a fonte de todas as perguntas!»
Foi nas récitas organizadas pelo Colégio Esperança que José Joaquim Mota Caria começou a manifestar os seus dotes para o espectáculo, nomeadamente, como actor e comediante. Como uma vez confessou, «Já nessa altura, estava sempre em palco.»
O poeta recorda: «Era preciso haver dois carolas, que, pelo gosto pela arte, conseguissem congregar, para uma ocupação de tempos livres verdadeiramente construtiva, os elementos necessários à sua construção. Depois de um trabalho intenso de actividade cénica realizado pelo Sr. Humberto de Sousa e pelo Dr. Manuel Paulino Gomes Jr., os quais realizaram conjuntamente «Festa Rija» (1941), revista que punha a descoberto os amadores do Montijo, surge o Grupo Cénico, da autoria do Sr. Humberto de Sousa, que compunha a música, e minha, que escrevia tudo o que não era música. O Sr. Humberto de Sousa veio a falecer em 1 de Julho de 1962 e, o que é um facto, é que não havia ninguém à altura de o substituir.»
A conjugação dos esforços de José Joaquim Mota Caria, de Humberto de Sousa e de uma plêiade jovens, cujos nomes não compete aqui evocar, e a compreensão das suas famílias, num tempo marcado por um forte conservadorismo, lançaram uma lufada de ar fresco sobre o Montijo, e os seus espectáculos transformaram-se em autênticos “terramotos” culturais, com o epicentro no riso demolidor que provocava o saudável e bom humor do Grupo, cujos programas alertavam: «Os intervais podem ser preenchidos com “Gaitadas” que não faz mal nenhum, até engorda!»
O estrondoso sucesso obtido pelo Grupo vai prolongar-se durante uma década, numa acção continuada de espectáculos onde imperam o bom gosto, o bom humor e o bem representar. Em todos José Joaquim Mota Caria participou, em todos foram representados textos seus.
Em 24 de Dezembro de 1951, no Salão de Festas do Clube Desportivo de Montijo, o GCM apresentou o primeiro espectáculo da série «Parada da Alegria», que mantinha a estrutura dos espectáculos anteriormente apresentados, à qual foi acrescentada a organização de concursos que faziam interagir aos espectadores com o Grupo Cénico.
A receita era simples: bom humor, apresentado entre poesia, concursos e canções, e acompanhados pela Orquestra Eldorado, orquestra privativa do Grupo Cénico Montijense, dirigida por Humberto de Sousa, compositor e pianista, e que contava com o talento de José Ribeiro Vintém, bateria, António Onofre, contrabaixo, Mário Gouveia, clarinete, António dos Santos, trompete, e José Gouveia, sax–tenor.
José Joaquim Caria (letra) e Humberto de Sousa (música), num rasgo de intensa inspiração, criaram «O Fado de Montijo», que se transformou no autêntico “hino” da terra. Entoado, em estreia, por José Vintém, no mês de Março de 1955, no Café Portugal, em Montijo, ganhou projecção nacional pela voz de Moniz Trindade.
De finais da década de quarenta a início da década de sessenta, escreve essencialmente para o teatro amador.
Tendo adoecido gravemente, em Março de 1961, abandona o teatro e, nesse mesmo ano, Mota Caria revela-se um poeta de apurada sensibilidade. São desta época alguns dos seus melhores poemas, que, mais tarde, viriam a figurar no seu livro “Refracção”, publicado em Dezembro de 1973.
«Nasce-se poeta! É uma fatalidade anímica. A Poesia situa-se, perigosamente, na gloriosa fronteira entre o génio e a loucura», declarou José Joaquim Caria.
José Joaquim Mota Caria deixou uma obra poética que se resguarda em três livros – Refracção, 1974; Pedras Soltas, 1978; e Mosaicos, 1985, vasto painel de quadras, escritas ao sabor da vida, sugerindo cada uma delas «um comentário, uma súplica, uma crítica, uma denúncia… ou, no fundo, talvez uma confissão», como prefaciou Américo Leite Rosa.
O poeta deixou-nos uma obra feita de reflexão, como se o homem, tendo parado um dia para reflectir, se tivesse feito poeta, tecendo os seus versos com a fímbria das suas doridas e esfarrapadas emoções.
Pausa para reflexão e fuga. Tempo presente e tempo passado. Fuga de si, não para outros horizontes, mas para o horizonte inalcançável de si próprio, como se tivesse quebrado as amarras que o ligavam ao exterior e tivesse partido, buscando na praia dos seus sonhos, entre frustrações e anseios, o ser que o tempo abalou. Nessa viagem, o poeta desvenda-nos os labirintos onde flui a vida que (se) transfere palavra a palavra, verso a verso, para a sua obra.
É o poema feito catarse ou, parafraseando Pradelino Rosa, «perdido no Universo, o poeta recupera o seu ser que o tempo tirou. E em si recupera toda a constelação. Esculpe em eterno o que a vida tinha esculpido em efémero. É, pois, a omnipresença da vida o seu tema único, eterno, manifestado de mil formas. Seu anseio mais estremecido é ser, continuar a ser, nunca deixar de ser.»
Tão discretamente como viveu, José Joaquim Fialho Mota Caria partiu, no dia 3 de Agosto. A cidade distraída não lhe prestou as honras do luto.
É dever de todos guardar, na memória da nossa colectividade, o nome dos Nossos Maiores, honrando Montijo, a sua História e as Gentes que a vão escrevendo.
Escreveu Kakuzo Okakura: «Os que são incapazes de sentir em si mesmo a pequenez das grandes coisas estão aptos a subestimar nos outros a grandeza das pequenas coisas.»
 

Poemas de J.J. Caria



Pela porta de um café
Entra o homem,
Indeciso,
Que ninguém sabe quem é.
Olha em volta, procurando,
Inquieto,
Mas ninguém sabe porquê.
É Outono!
E o homem traz com ele,
Dentro dele,
A intranquilidade
Que o vento lhe transmitiu.
Por isso o homem olhou
À sua volta e não viu,
Hesitou,
Tornou a olhar
E saiu…



O dia de hoje parou às onze e meia!
E eu vi ficar o tempo pendurado,
Encharcado em tédio,
Pingando lentamente nos meus nervos
Gotas amargas de melancolia…
O dia diluiu-se todo em mim,
Senti-o acomodar-se no meu peito
E passei a ser o próprio dia!

  

Eu queria que arrancassem todos,
Um a um,
Os nervos do meu corpo!
E, em seu lugar,
Deitassem nos sulcos vazios
Da minha carne
O bálsamo da serena aceitação da vida.
Uma vida simples e calma,
Duma calma tamanha
Que eu julgasse ter em mim
A estranha serenidade
Dum pôr-do-Sol na montanha!  



Como eu gostava de viver sem Alma,
Ser vazio de tudo o que é Humano
Numa ausência total de Me sentir,
E quando alguém falasse à minha volta,
Não entender os sons somente ouvir!
Pedra triste no alto da Montanha,
Indiferença total de coisa bruta
Despida de emoções e sentidos,
Ouvir gemer o vento nos penhascos
E não saber sequer
Que são gemidos!
Ânsia brutal de me expulsar de Mim,
Repúdio absoluto de me querer,
Abandono integral de Me encontrar,
Como um rio que corre doidamente
A fugir de si próprio
Até ao mar!



Gosto de ficar sentado…
Numa pedra, num banco,
Em qualquer lado
Onde tudo o que é meu
Possa ficar sentado.
Eu,
Os meus sentidos,
As minhas incertezas,
Em equilíbrio estável!
Tudo quieto e caldo,
Sem ver nem ouvir
O que se passa ao lado.
É assim que eu penso que é ficar sentado!
Depois,
Olho-me longamente,
De fora p’ra dentro,
Numa introversão preguiçosa
De quem está cansado,
E sinto mais ainda a lúcida certeza
Da imensa vontade
De ficar sentado!



  Aqui é Montijo

É de madrugada…
Serena, embalada
Na esperança que é,
A Vila ainda dorme
Na certeza enorme
D’um sonho de Fé!
Já paira sobre ela
A doce aguarela
Do dia nascente,
Apaga-se a Lua
E anima-se a rua
Com a vida da gente.
Há vultos que passam
Conversam, chalaçam,
Na santa alegria
Da rústica gente
Que parte contente
P’rá faina do Dia.
Os burros e enxadas
Tocam nas calçadas
Velha sinfonia…
Sua vida encerra
A História da Terra
Que já se esquecia!
Pescadores no rio
Eterno desafio
À força do Tejo,
Enfrentam revezes
Que a maré às vezes
Não vai a desejo!
O Sol despontou,
A Vila acordou
E parece gritar:
- Sacode a preguiça
Que o pó da cortiça
Já anda no ar!
Sirenes uivando,
Gritando, chamando
O operariado,
Que passa ligeiro,
Sereno e ordeiro
Na rua, apressado.
Guiando o seu rumo
Penachos de fumo
Subindo em espiral,
São o símbolo imenso
Do trabalho intenso
Da vida local.
Energia dinâmica
Trabalha a cerâmica
A Indústria geral,
Cortiça – a Rainha
Chacina velhinha
Não tem rival!
Trabalho e progresso
Não há retrocesso
Na vila fremente,
Aumenta o valor
Cada vez maior
Em ritmo crescente.
Homens trabalhando,
Máquinas arfando,
Pulmões industriais,
Mais vitalidade,
Poder e Vontade
Que em terras iguais.
E todo o rumor
Do intenso labor
Se transforma num brado,
Ecoando vibrante
Feliz triunfante,
Poderoso e sagrado!
E o brado potente
Que eu lanço contente
E com regozijo,
É um Hino de Amor,
Progresso e Labor:
AQUI É MONTIJO!

  José Joaquim Mota Caria

 Ruky Luky

3 comentários:

  1. Parabéns pela iniciativa, que a viagem pelas águas seja calma e pacífica e recheada de muita poesia.

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  2. Como é bom haver ainda quem reconheça o valor dos que já não estão entre nós e que, por desrespeito pelo passado, as pessoas se vão esquecendo, porque já não se cultiva a memória, num mundo que só tem em conta o imediato.
    Parabéns ao Rui e a minha modesta homenagem pelo seu esforço em prol duma causa que está a naufragar.
    Um abraço do
    Joaquim Carreira Tapadinhas

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  3. Sempre que ia ao parque correr, sempre que levava as minhas sobrinhas, sempre que levava o Rex, sempre... minto, mas parecia que era sempre, tantas que eram as vezes... encontrava-o. Era uma pessoa espetacular, sempre cheio de boa disposição com quem se conseguia conversar muito bem. É difícil acreditar que ele tenha "partido", tão depressa, tão subitamente. E enquanto existir pedras com os poemas dele no meu caminho, de certo modo não partiu. Obrigado Rui, a tua homenagem a ele emocionou-me!

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