terça-feira, 7 de agosto de 2012

Memórias de um pescador

António João Coelho de Sousa [Marcelino]



António João Coelho de Sousa, uma vida ligada ao Tejo
Este rio, que eu bem conheço… Parece que não fiz outra coisa na vida a não ser viver no rio. Ainda andava na escola e já ia à pesca com o meu pai. Porque gostava muito. O que eu gostava mesmo – e continuo a gostar – é do rio, da pesca e das suas artes. Não há nada nesta faina que eu não tenha aprendido. Navego neste rio, que o conheço como as minhas mãos, desde que me conheço…
A Campanha… O meu bisavô foi pescador. Aos 85 anos ainda pescava. O meu avô, Marcelino de Sousa, foi um dos fundadores da Sociedade Cooperativa União Piscatória e o meu pai, António João de Sousa, foi um dos animadores das Festas dos Pescadores, em 1950. Eu bem posso afirmar que nasci e vivo no rio. As minhas brincadeiras preferidas eram no rio e aos dez anos já partia para a faina com o meu pai, na sua campanha.

A campanha tinha normalmente 14 homens. O meu pai chegou a andar com uma campanha de 14 homens e 17 rapazes ao rabisco.

Havia regras a cumprir. Nas refeições, enquanto durasse a faina, normalmente 10 a 12 dias, comíamos todos do mesmo alguidar. Os rapazes que andavam ao rabisco tinham de pagar o seu próprio pão e não tinham direito a beber vinho.

Quando a campanha partia, levava, normalmente, o bote-mãe, os botes-enviada, as canoas das redes e as caçadeiras (lanchas de transporte). Cada homem levava as suas próprias redes. Como não havia meios para conservar o peixe apanhado os botes-enviada transportavam-nos logo para terra para serem vendidos.

No final da faina, juntava-se todo o dinheiro e fazia-se a repartição da seguinte maneira: primeiro, tirava-se o dinheiro da Associação (SCUP) e do padeiro, que era para pagar o avio feito na Associação e no padeiro. Da Associação nós levávamos o bacalhau, as batatas, o azeite, o vinho, o vinagre, a lenha, as cebolas, e os alhos, que eram ali vendidos. Depois, o restante dinheiro era divido por partes, assim: 1 homem - 4 partes; Quinhão das redes – 2 partes; Bote-mãe – 4 partes; Bote-enviada – 3 partes; Canoa de redes – 1 parte; Caçadeiras – 10% a 15% do quinhão das redes.

«Tapa-esteiros» ou «cerco», arte da pesca praticada, em Montijo, até ao final da actividade piscatória, na década de 90.

Por este rio acima… Ao longo do esteiro íamos até Cacilhas e subíamos o rio até Pancas. Ainda usei o “tapa-esteiros” nos Olivais, Poço do Bispo e por ali além. Nesse tempo, sim, valia a pena. Só para se fazer uma ideia do rio, aí há trinta anos, basta dizer-lhe que, quando as corvinas começavam a roncar faziam tal barulho que superava o das máquinas e era de tal modo ensurdecedor que ficávamos com a cabeça a zunir. Acredite, que não exagero. O rio estava cheio de corvinas, tantas como pedras há numa calçada. E não eram só corvinas. O rio era generoso no que nos dava e tudo era bom. As ostras, por exemplo, eram sadias, saborosas, cheias de miolo. Quem não as conheceu assim como eu e os meus companheiros ainda as conhecemos, terá, talvez, dificuldade em acreditar que se apanhavam ostras com meio quilo de miolo.
Botos… Golfinhos… Se os vi…Havia muitos, na Doca do Alfeite, onde era proibido pescar. Eles andavam por ali porque sabiam como eu que havia muito peixe. Não havia dia nenhum que, em grupos, os golfinhos não subissem até ao Montijo. Com a poluição desapareceram as algas, as ostras e os botos. Foi um desaparecimento quase simultâneo.

Canoas atracadas no Cais dos Vapores- 2012

O rio e as artes da pesca… Ainda me recordo de ter visto construir aqueles barcos, nos estaleiros de Montijo. Ali, enterrados [no lodo] estão o “Passarinho”, o “Espantalho”, o “Teimoso” e a “Flor de Montijo”. Você já reparou que a Moita, o Seixal e Alcochete, entre outras localidades, têm barcos daqueles a navegar e só Montijo e Lisboa é que não?

Naquela altura o rio era bonito, com centenas de embarcações à vela. O tejo ficava todo embandeirado. O transporte de mercadorias era feito pelo rio e ficou-me na recordação o bote “Carlos Alberto”, do Izidoro, que fazia abastecimento até Salvaterra.

Não quero errar, mas não andarei longe da verdade se disser que, entre 1940/1950, havia perto de 400 pescadores e 30 ou 40 catraios.

Usávamos várias artes, que foram sendo proibidas ou esquecidas, como o candeio, o tresmalho ou tramalho, as redes singeleiras, o arrasto, a pesca à chincha, entre outras. O rio era rico, cheio de corvinas, charrocos, salmonetes de todo o tamanho, douradas santolas, camarão e ostras, a valer, raias, em grande abundância até à zona das lezírias, e tantos outros peixes…

Hoje? Nem robalos, nem enguias, nem patruças… Lá se vai pescando uma ou outra coisinha, mas a vida está má. Há dias – e tantos são – que o que se pesca não paga as despesas.

Apetrechos de pesca - Cais dos Vapores, 2012

Lubélia Maria… A minha embarcação é a mais antiga do Tejo, dentro do seu género. Está registada na Delegação Marítima há 120 anos. Nem sempre se chamou «Lubélia Maria». Quando a minha família a comprou chamava-se «Maria Luísa», mas após a reparação a que foi submetida, mudámos o nome para «Merlinda» e, com o nascimento da minha filha, resolvi dar-lhe o nome com que baptizara a minha filha, «Lubélia Maria».

Era um barco à vela, como os catraios. Em 1948 ou 1949, foi-lhe aplicado um motor fora-de-bordo, que só se começou a vulgarizar a partir de 1955. Em 1964, tornou-se foi a primeira canoa com motor a bordo, no Tejo.
Ali, enterrados [no lodo] estão [estavam] o “Passarinho”, o “Espantalho”, o“Teimoso” e a “Flor de Montijo”. Você já reparou que a Moita, o Seixal e Alcochete, entre outras localidades, têm barcos daqueles a navegar e só Montijo e Lisboa é que não?
Uma classe pobre… Sempre fomos uma classe pobre. Não houve trabalhador nenhum que não tivesse de trabalhar até morrer. Poucos conseguiram amealhar para comprara a sua própria casa. E foram as privações que os pescadores passaram que levaram um pequeno grupo deles a constituir a Sociedade Cooperativa União Piscatória, que, tanto quanto eu sei, foi a única do seu género no País. A Sociedade Cooperativa permitiu que os pescadores se aviassem e abastecessem as suas famílias fazendo as contas ao voltarem da faina.

No Inverno, por questões de segurança, os pescadores procuravam outra ocupação. Trabalhavam então nos transportes, na agricultura ou na chacinaria. Não fugi a este destino, pois também trabalhei nos transportes e na chacinaria. Mas, felizmente, o rio e a vida não foram maus para mim.


Nota: António João Coelho de Sousa, nascido no ano de 1934, em Montijo, é o último elo de gerações sucessivas de pescadores.

No início da década de 90, por imposição do Regulamento 402/86 da Comunidade Europeia, a generalidade dos pescadores de Montijo teve de proceder ao abate físico das embarcações de pesca com um comprimento, entre perpendiculares, inferior a 9 metros, iniciando-se, assim, o processo que levou, praticamente, ao fim da faina piscatória, em Montijo.

António João, ou Marcelino, como também é conhecido em homenagem ao seu avô, testemunha o fenecimento do rio, que foi riquíssimo, mesmo neste braço que embeleza Montijo. No início do século XX, havia tantos botos (golfinhos) no esteiro, que dizimavam os peixes, que os pescadores tiveram de pedir apoio às autoridades para combaterem tão poderoso concorrente. Por outro lado, tornaram-se lendárias as ostras de Aldegalega, que eram exportadas para alguns países europeus.

O texto foi composto a partir da entrevista que o «Pescador», como o tratam os seus amigos, concedeu à “Nova Gazeta”, em 1991.

Guarde-se, então, esta memória, para mais tarde recordar, quando as corvinas voltarem a povoar o rio…

Ruky Luky




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