segunda-feira, 28 de maio de 2012

Das Festas a que todos hão-de ir
[Repositório das Festas que houve em Montijo]

Praça da República, 1903. Festas do Divino Espírito Santo, orago de  Aldegalega do Ribatejo
Santa Maria de Sabonha [séc. xiv-xvi ?] - «Todos hão-de ir a Sabonha porquanto a dita Igreja de Sabonha é matriz de todas e [por isso] é ordenado a todos os moradores de Alcochete, Aldeia Galega, Póvoa, Samouco e Sarilhos que vão às festas principais ouvir missa à dita igreja, o que não fazem deixando esquecer a devoção de uma igreja tão antiga» - (Visitação dos Freires da Ordem de Santiago, 1525).
Aldeia Galega do Ribatejo integrava então o concelho dos Lugares do Ribatejo, que era constituído por minúsculas póvoas ribeirinhas da orla transtagana em poder da Ordem de Santiago. Todas elas tinham em Sabonha, um lugarejo entre Montijo e Alcochete, hoje denominado S. Francisco.
As festas em honra de Nossa Senhora de Sabonha cumpriam o calendário das romarias medievais bem descritas no cancioneiro português, com profundo sentimento religioso.
A distância que separava a localidade das demais e a construção de novas igrejas próximo mais próximas das populações são algumas das causas que explicam que os fiéis tivessem deixado de concorrer à igreja de Santa Maria de Sabonha.


Divino Espírito Santo [séc. xv-xx] - A Igreja do Divino Espírito Santo foi construída no século xv, sendo de admitir que, nesta data, já se celebrava a festa em honra do orago de Montijo, topónimo que se adopta por economia de meios.
No século xvi, existiam, em Montijo, as seguintes confrarias: Santíssimo Sacramento, Nossa Senhora da Atalaia dos Barqueiros, Hospital do Espírito Santo, Nossa Senhora do Rosário, S. João, S. Pedro e Fiéis de Deus.
Cada confraria celebrava o dia consagrado ao seu patrono, entre a devoção religiosa e o prazer profano, que era levado a preceito, de tal monta que a Ordem de Santiago se viu obrigada a disciplinar as celebrações «pelos excessos que se fazem no gasto do comer à custa das confrarias», determinando que, doravante, «se não possa gastar mais à conta da confraria em festa alguma de dois mil réis.»
A Festa do Divino Espírito Santo foi, atá ao início do século xx, a  mais importante de Montijo.
Na reunião municipal de 19 de Maio de 1841, ficou deliberado que «hoje avante esta Câmara e as futuras sejam protectoras daquela festa concorrendo com os meios precisos para se festejar o Orago da freguesia, que de ora em diante deverá a despesa daquela festa ser em toda a consideração para esta Câmara.» O Vereador Fiscal ficou encarregado de «promover quanto puder para que a Festa ao Espírito Santo se faça com equidade possível e bom arranjo.»
A par do apoio da edilidade, as Festas do Divino Espírito Santo sofreram as vicissitudes dos tempos e as mudanças dos homens e foram marcadas pela irregularidade na sua comemoração.
No início do século xx, após três anos de interregno, uma comissão popular decidiu reatar a tradição e realizaram as Festas do Divino Espírito Santo, que cumpriram um variado programa, do qual se destacou procissão, que saiu acompanhado por três bandas de música; a música cantada; a quermesse; as iluminações à veneziana e à moda do Minho, fogo-de-artifício, concertos arraial e tourada.
No ano seguinte, não se realizou a festa por desacordo entre os membros da comissão de festas e, em 1905, a festa foi cancelada devido à morte do presidente da câmara.
Com a implantação da República, em 1910, as Festas do Divino Espírito santo deixaram de ser celebradas.
Em 1923 e 1924, a Sociedade Filarmónica voltou a realizar as Festas sob a invocação do Divino Espírito Santo, que soaram como o canto do cisne da celebração.


S. João [séc. xvi-xxi] – No século xvi estava instituída na Igreja Matriz do Divino Espírito Santo a Confraria de S. João, que celebrava o dia do seu patrono. Pouco se sabe destas festas e durante séculos se perderam as referências às comemorações em honra deste santo.
Na reunião da Câmara Municipal de Aldegalega, de 22 de Junho de 1839, a vereação considerou «ser grave o prejuízo danificar-se a calçada arrancando dela pedras e sendo costume alguns moradores desta vila nas noites de S. João, S. Pedro e S. Marçal arrancarem pedras da mesma para afincarem pinheiros para fazer fogueiras (…)».
Exceptuando uma ou outra notícia sobre as fogueiras de S. João, as notícias vão rareando.
Em 1903, já as comemorações eram consideradas «muito insulsas», limitando-se às «tradicionais fogueiras, bichinhas, estalidos e depois dos bailes do badagulho.»
Mais tarde, em 1917, um dos jornais da vila garantia que «acabaram já nesta vila os divertidíssimos bailes populares a que o vulgo chamava de “badagulhos”. Só dois, e de bem triste aparência, há este ano. E são demais para a concorrência.»
Nos “badagulhos, «relatavam-se em canções destrambelhadas os acontecimentos mais notáveis da localidade, numa espécie de revista do ano que servia de crítica e documentário ao mesmo tempo [e onde] ao som de avinhadas vozes as moçoilas em grande roda, de braço dado com o seu derriço, lá iam em tropel, cantando ao desafio.»
Encerraram-se os “badagulhos”, apagaram-se as fogueiras e, hoje, só por mera brincadeira juvenil, talvez se veja ainda a crepitar alguma fogueira pelo S. João.
  


S. Sebastião [séc. xvii-xx]A Ermida de S. Sebastião, que «fez o concelho por sua devoção», foi a primeva igreja de Montijo, e já estava edificada no século xv, em Aldeia Velha, principal núcleo de Aldeia Galega habitado por camponeses (homens da terra).
Em 1614, os mancebos solteiros por considerarem que o bem-aventurado Mártir S. Sebastião não tinha Confraria nem Irmandade na qual fosse servido e festejado e que a sua igreja estava danificada e arruinada e o seu altar sem ornamentos e tudo abandonado, determinaram tomar o santo mártir por «seu protector e advogado.»    
Nos termos do “Compromisso da Irmandade do Bem Aventurado Mártir S. Sebastião Instituída pelos Mancebos Solteiros Desta Vila de Aldegalega do Ribatejo na Igreja do Santo Mártir, Que Foi Freguesia”, que foi confirmado por Alvará de Filipe II, em 20 de Fevereiro de 1615, «em cada ano, a 20 de Janeiro, no mesmo dia do Santo se faça a sua festa [constando esta] de Missa Cantada, Pregação e Procissão Solene da Igreja Matriz até à casa do Santo.»
São escassas as notícias acerca destes festejos.
Em 1903, «uma comissão composta pelos senhores João Soares Canastreiro Sobrinho, António Joaquim da Veiga, Manuel dos Santos Rosa e José Cândido Anunciação deliberou fazer os festejos de S. Sebastião, que há muitos anos não se faziam.»
Perderam-se as notícias e a tradição.
Em 1980, por vontade dos moradores das Ruas Joaquim de Almeida e Miguel Bombarda realizaram-se umas festas, de cariz profano – comes-e-bebes, largadas e música -, que se denominaram “Festas Populares de S. Sebastião” contrapondo-se às Festas Populares de S. Pedro.
Tratou-se de um gesto de rebeldia dos moradores daquelas artérias que não aceitaram a deslocalização das largadas, que habitualmente ali se faziam, para o Bairro dos Pescadores.
Celebrado um acordo de cavalheiros entre as partes desavindas e regressadas as largadas ao local habitual, as Festas Populares de S. Sebastião celebraram-se pela última vez em 1986.


Nossa Senhora da Piedade [séc xvii-xx] - «Era no penúltimo domingo do mês de Agosto, que se realizava a feira da Piedade, na praça, junto à Igreja Matriz.
No lado norte, a poente desta praça, armavam as barracas de quinquilharias e algumas de repasto; do nascente, a então conhecida barraca da Júlia, de queijadas, bolos e refrescos, que era frequentada pelas pessoas mais em evidência da vila. E no sul, na direcção da rua Direita à rua da Praça, as bastantes barracas de repasto.
Ao canto da praça, também do lado sul, armavam os circos de ginástica e cavalinhos.
Passados três dias, desmanchavam as barracas e iam armar na Atalaia.» - Testemunho de Cândido Ventura – 1859-1953.
As Festas em honra de Nossa Senhora da Piedade tiveram notoriedade até ao século xix e eram organizadas pelos Festeiros da Festividade de Nossa Senhora da Piedade que requeriam à câmara municipal o produto do terrado da feira para ser aplicado na festa..
A última notícia deste evento remonta a 23 de Agosto de 1903. Segundo o jornal “O Domingo” os festeiros «aproveitaram as barracas por ocasião das festas do Espírito Santo» e a comemoração tinha corrido «animadíssima».


Festa da Terra [séc. xviii-xx] É uma reminiscência do Círio (do terramoto) de Aldeia Galega, instituído em 1755, em homenagem a Nossa Senhora da Atalaia por ter salvaguardado a vila do terramoto.
Festa religiosa – procissão e missa – e profana – arraial, quermesse, cavalhadas, bailes, descantes, corridas de sacos e, mais tarde, de bicicletas, e muitos outros divertimentos.
Celebrava-se em Atalaia, no mês de Novembro e durante dois dias.
Há notícia da realização desta feita até aos primórdios do século XX.


Nossa Senhora da Conceição [séc. xix] A festa realizava-se em Maio, durante dois dias. Além da devoção religiosa, incluía no seu programa o arraial.


Nosso Senhor Jesus dos Aflitos [séc. xix-xx?] Local de devoção dos pescadores, a ermida de Nosso Senhor Jesus dos Aflitos, localizada na Quinta do Saldanha, ainda hoje, os recebe na lavagem efectuada no dia de S. Marçal. No século xix, ali se realizava uma festa de cariz popular, cuja origem se desconhece. Em 1902, após seis anos de interregno, houve uma tentativa malograda para as voltar a realizar. Quando já estavam «assentes algumas barracas de comes e bebes e outras» e se esperava «grande afluência do povo», o mau tempo ditou a sua lei.


Sestas [séc. xix?-xx] Na segunda-feira dos Prazeres era costume assinalar-se o dia da Senhora dos Prazeres partindo as famílias para o campo acompanhadas de farnéis para assinalarem a entrada das sestas. A generalidade dos estabelecimentos comerciais encerrava, à tarde, «em consequência dos seus proprietários quererem ir passear com as suas famílias o resto do dia ao campo.»
No regresso, a animação era geral e os grupos entravam na vila a entoar canções, a tocar e a dançar.


Dia da Espiga [séc. xix-xxi] Na quinta-feira da ascensão do Senhor, «foi muito povo passear ao campo. Por toda a parte se merendava com alegria. Pobres e ricos todos emigraram para os campos em bandos ruidosos de alegre convívio, a fim de colherem a espiga.
A celebração é, hoje, muito restrita, mas ainda é assinalada, havendo quem se dirija à Atalaia para apanhar a espiga, ramo composto por três espigas de trigo, três malmequeres, três raminhos de oliveira e três papoilas.


Judas [séc?-xx] Pela Páscoa recordava-se a traição de Judas a Jesus Cristo. A tradição mantém-se até ao século xx, pendurando-se bonecos em postes que eram depois espancados e queimados pela garotada que, «armada de bons cacetes, invadia as ruas por onde passava depois de os sinos terem repicado.»
A implantação da República esfriou o entusiasmo popular para representar a morte do discípulo traidor de Cristo.



Festa da Fruta [séc. xx] Festa organizada pela Banda Democrática 2 de Janeiro, a partir de 1921, entre os meses de Setembro e Outubro. O programa das festas cumpria-se usualmente com a exposição de frutas, concertos e um pic-nic a Rio Frio. A festa realizava-se na Praça 1.º de Maio.
Extinguiu-se no início da segunda metade do século xx.




Grandes Festas de Montijo [séc. xx] - Corresponderam ao desejo de recriação de umas festas semelhantes às do Divino Espírito Santo, que ainda perduravam na memória das gerações mais antigas. As festas só se realizaram em 1935, entre os dias 6 a 16 de Julho. Além dos elementos tradicionais em qualquer das festas já assinaladas, destacou-se a 1.ª Exposição Regional de Montijo e, do ponto de vista religioso, assinalou-se a organização de uma procissão, acontecimento que se não registava desde a implantação da República.

 Ruky Luky






















domingo, 27 de maio de 2012

O Discurso do Presidente

 «Modesto trabalhador, em contacto diário com a terra e que por força do destino [sou] também presidente da Câmara Municipal desta terra que me serviu de berço [Montijo].
 
A nossa terra vive um período áureo, e ciosa do seu valor quer cada vez mais e melhor. Não nos contentamos com pequenos melhoramentos de aldeia; as nossas aspirações são grandes, pois entendemos que a nossa terra também é grande sob todos os aspectos.

Quisemos um dia uma cadeia comarcã, amarra forte para a manutenção da nossa comarca e temo-la pronta a inaugurar este ano. Temo-la, sim, mas a melhor de toda a região.

Quisemos um mercado e temo-lo já em acabamento, um edifício invulgar pela sua concepção arquitectónica e pelo seu valor. É o mais belo e mais importante de toda a região.

Quisemos um Palácio da Justiça e já o vemos em adiantada construção – o primeiro pavimento foi há dias coberto. Mas esse Palácio de Justiça não tem par em todo o sul do Tejo; é um edifício situado no melhor local da vila, verdadeiramente monumental, e que importa em mais de cinco mil e quinhentos contos.

A iniciativa particular acompanha também o ritmo do progresso, fazendo surgir notáveis realizações.

Um dia o Montijo quis um cinema, mas não quis um cinema como qualquer outra terra, quis sim um edifício grandioso, monumental, com todos os requintes modernos, e a verdade é que o tem mesmo, quase pronto a inaugurar.

Mas o Montijo que não pára de querer, deseja agora uma Praça de Touros. Vê-la-á, sim, em breve, mas não será uma Praça qualquer, será uma das melhores do País, com lotação para seis mil e quinhentos espectadores e dotada dos mais modernos requisitos.

É assim a nossa terra. Demora a decidir, demora, por vezes, também a construir, mas sabe o que quer, porque só quer bom, grandioso, imponente e belo.»

                         José da Silva Leite


Discurso proferido em 1 de Julho de 1956, no almoço da classe piscatória nas Festas Populares de S. Pedro.
José da Silva Leite (1913 – 1986) foi presidente da Câmara Municipal de Montijo, no período de 1955/1960. Dirigente da União Nacional, marcou o seu mandato com uma acção política que denominou «Montijismo, isto é, a defesa intransigente de tudo o que de qualquer modo interesse à nossa terra.»

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Cancioneiro

«A Quadra é o vaso de flores que o Povo põe à janela da sua Alma.
 Quem faz quadras portuguesas, comunga a alma do povo, humildemente de todos nós e errante dentro de si próprio.»

                                                  Fernando Pessoa

Eugénio de Castro

A vida é negra, mais negra
Que a noite nos pinheirais…
Mas é nas noites mais negras
Que as estrelas brilham mais…

Triste de mim e de quantos
O desalento lanceia,
Do que foi rico e está pobre,
Da que foi linda e está feia!

Diademas não são apenas
Dos reis um ornamento vão:
Pobrezinhos há, bem pobres,
Que os trazem no coração.

Cantar é tarefa d’anjos,
Tarefa que agrada aos céus:
Cada canção é uma asa,
Que nos eleva até Deus!
  
  Canções Desta Negra Vida - 1922


 Augusto Gil

Quem por amor se perdeu
Não chore, não tenha pena,
Uma das santas do céu
-É Maria Madalena…

Nós temos o mesmo fado,
Oh fonte d’água cantante,
Quem te quer, pára um bocado,
Quem não quer, passa adiante…

Se aquilo que a gente sente,
Cá dentro tivesse voz,
Muita gente… toda a gente
Teria pena de nós!

E há no mundo quem afronte
Uma mulher quando cai!
Nasce água limpa na fonte,
Quem a suja é quem lá vai
             Luar de Janeiro – 1909


Correia de Oliveira

De hora a hora Deus melhora,
Podes ter fé no rifão.
Mas não durmas: vai buscando
Remédio por tua mão.

Mais vale a ajuda de Deus
De que muito madrugar;
Mas, quem madrugar, ajuda
A Deus que o pode ajudar.

O céu é de quem o ganha.
Toda a ventura se encerra
Em ganhar na terra o céu,
Transformando em céu a terra.

- Mais vale tarde que nunca.
Medidas que o tempo tem:
Para o mal é sempre cedo;
Nunca é tarde para o bem.
           Dizeres do Povo – 1911

 António Nobre

 Meu violão é um cortiço,
Tem por abelhas os sons,
Que fabricam, valha-me isso,
Fadinhos de mel, tão bons.

Os teus peitos são dois ninhos
Muito brancos, muito novos,
Meus beijos os passarinhos
Mortinhos por porem ovos.

Ó fogueiras, ó cantigas,
Saudades! Recordações!
Bailai, bailai, raparigas!
Batei, batei, corações!

Nossa Senhora faz meia
Com linha branca de luz:
O novelo é a lua cheia,
As meias são para Jesus.
                    Só - 1890

João de Deus

A rosa que tu me deste
Peguei-lhe, mudou de cor;
Tornou-se de azul-celeste
Como o céu do nosso amor

Quando eu era pequenino
Que chorava a bom chorar
A mãe beijava o menino,
No beijo se ia o pesar.

Se tua mãe te vigia,
Faz tua mãe muito bem;
Com joias de tal valia
Não há fiar em ninguém.

Faça Deus maior o mundo,
Terra, mar e céu maior,
Não faz nada tão profundo,
Tão vasto como este amor.
   Campo de Flores – 1893

António Botto

Chamaste-me tua vida,
Eu a alma quero ser.
A vida acaba na morte,
A alma não pode morrer.

Triste de quem tem amores,
Triste de quem os não tem;
De toda a maneira é triste
Sentir saudades de alguém.

Tenho um craveiro no peito
Que dá cravos todo o ano;
Só os dou ao meu amor
Em troca de um desengano.
Anda um ai na minha vida
Que me lembra a cada passo
A distância que separa
O que eu digo do que eu faço.
          Canções de António Botto – 1922

António Gedeão

Meu coração é máquina de fogo,
Luz de magnésio, floresta incendiada.
Combustar-se é o seu próprio desafogo.
Arde por tudo, inflama-se por nada.
Diferente de quanto existe
Só a dor que me reparte.
Enquanto em mim morro triste,
Nasço alegre em toda a parte.

Tremi no escuro da selva,
Alambique de suores.
Estendi na areia e na relva
Mulheres de todas as cores.

O meu sabor é diferente.
Provo-me e saibo a sal.
Não se nasce impunemente
Nas praias de Portugal.
            Poesias Completas – 1956 - 1967

Fernando Pessoa

Quando compões o cabelo
Com tua mão distraída
Fazes-me um grande novelo
No pensamento da vida.

Dá-me um sorriso daqueles
Que te não servem de nada
Como se dá às crianças
Uma caixa esvaziada.

Chamam-te boa, e o sentido
Não é bem o que eu supunha.
Boa não é apelido:
É, quando muito, alcunha.

A vida é um hospital
Onde quase tudo falta.
Por isso ninguém se cura
E morrer é que é ter alta.
   Quadras ao Gosto Popular – 1935

António Aleixo

Engraxadores sem caixa
Há aos centos na cidade,
Que só usam a tal graxa
Que envenena a sociedade.

Quem canta por conta sua
Quer ser, com muita razão,
Antes pardal, cá na rua,
Que rouxinol na prisão.

O teu amor, minha querida,
Livrou-me de me afogar
No mar imenso da vida
Onde supus naufragar.

Vim ao mundo sem saber
Que vinha a ser o que sou;
Agora morro sem querer
sem saber para onde vou.
  Este Livro que vos Deixo - Inéditos

Anónimo

Chorai fadistas, chorai,
que uma fadista morreu.
Hoje mesmo faz um ano
Que a Severa faleceu.

Lá nesse reino celeste,
Com tua banza na mão,
Farás dos anjos Fadistas,
Porás tudo em confusão

Até o próprio S. Pedro
À porta do céu sentado,
Ao ver entrar a Severa
Bateu e cantou o fado.

Ponde no braço da banza
Um sinal de negro fumo,
Que diga por toda a parte
O Fado perdeu seu rumo.

Severa, linda Severa,
Foste a princesa do Fado;
A rainha das fadistas
O sol do teu bem-amado

O fadinho da Severa
Vai direito ao coração;
Cantai o fado da musa
Da rua do Capelão.

 Eu vou cantar a Severa
Nesta bela ocasião;
O seu Fado é de encantar
Vai direito ao coração.

Quando a Severa faleceu,
O Vimioso adorado
Disse, vertendo lágrimas:
Morreu o mimo do dado!

Chorai fadista, chorai
Que a Severa se finou;
O gosto que tinha o Fado
Tudo com ela acabou.
           Cancioneiro Popular Português
                         Fim