sexta-feira, 25 de maio de 2012

Cancioneiro

«A Quadra é o vaso de flores que o Povo põe à janela da sua Alma.
 Quem faz quadras portuguesas, comunga a alma do povo, humildemente de todos nós e errante dentro de si próprio.»

                                                  Fernando Pessoa

Eugénio de Castro

A vida é negra, mais negra
Que a noite nos pinheirais…
Mas é nas noites mais negras
Que as estrelas brilham mais…

Triste de mim e de quantos
O desalento lanceia,
Do que foi rico e está pobre,
Da que foi linda e está feia!

Diademas não são apenas
Dos reis um ornamento vão:
Pobrezinhos há, bem pobres,
Que os trazem no coração.

Cantar é tarefa d’anjos,
Tarefa que agrada aos céus:
Cada canção é uma asa,
Que nos eleva até Deus!
  
  Canções Desta Negra Vida - 1922


 Augusto Gil

Quem por amor se perdeu
Não chore, não tenha pena,
Uma das santas do céu
-É Maria Madalena…

Nós temos o mesmo fado,
Oh fonte d’água cantante,
Quem te quer, pára um bocado,
Quem não quer, passa adiante…

Se aquilo que a gente sente,
Cá dentro tivesse voz,
Muita gente… toda a gente
Teria pena de nós!

E há no mundo quem afronte
Uma mulher quando cai!
Nasce água limpa na fonte,
Quem a suja é quem lá vai
             Luar de Janeiro – 1909


Correia de Oliveira

De hora a hora Deus melhora,
Podes ter fé no rifão.
Mas não durmas: vai buscando
Remédio por tua mão.

Mais vale a ajuda de Deus
De que muito madrugar;
Mas, quem madrugar, ajuda
A Deus que o pode ajudar.

O céu é de quem o ganha.
Toda a ventura se encerra
Em ganhar na terra o céu,
Transformando em céu a terra.

- Mais vale tarde que nunca.
Medidas que o tempo tem:
Para o mal é sempre cedo;
Nunca é tarde para o bem.
           Dizeres do Povo – 1911

 António Nobre

 Meu violão é um cortiço,
Tem por abelhas os sons,
Que fabricam, valha-me isso,
Fadinhos de mel, tão bons.

Os teus peitos são dois ninhos
Muito brancos, muito novos,
Meus beijos os passarinhos
Mortinhos por porem ovos.

Ó fogueiras, ó cantigas,
Saudades! Recordações!
Bailai, bailai, raparigas!
Batei, batei, corações!

Nossa Senhora faz meia
Com linha branca de luz:
O novelo é a lua cheia,
As meias são para Jesus.
                    Só - 1890

João de Deus

A rosa que tu me deste
Peguei-lhe, mudou de cor;
Tornou-se de azul-celeste
Como o céu do nosso amor

Quando eu era pequenino
Que chorava a bom chorar
A mãe beijava o menino,
No beijo se ia o pesar.

Se tua mãe te vigia,
Faz tua mãe muito bem;
Com joias de tal valia
Não há fiar em ninguém.

Faça Deus maior o mundo,
Terra, mar e céu maior,
Não faz nada tão profundo,
Tão vasto como este amor.
   Campo de Flores – 1893

António Botto

Chamaste-me tua vida,
Eu a alma quero ser.
A vida acaba na morte,
A alma não pode morrer.

Triste de quem tem amores,
Triste de quem os não tem;
De toda a maneira é triste
Sentir saudades de alguém.

Tenho um craveiro no peito
Que dá cravos todo o ano;
Só os dou ao meu amor
Em troca de um desengano.
Anda um ai na minha vida
Que me lembra a cada passo
A distância que separa
O que eu digo do que eu faço.
          Canções de António Botto – 1922

António Gedeão

Meu coração é máquina de fogo,
Luz de magnésio, floresta incendiada.
Combustar-se é o seu próprio desafogo.
Arde por tudo, inflama-se por nada.
Diferente de quanto existe
Só a dor que me reparte.
Enquanto em mim morro triste,
Nasço alegre em toda a parte.

Tremi no escuro da selva,
Alambique de suores.
Estendi na areia e na relva
Mulheres de todas as cores.

O meu sabor é diferente.
Provo-me e saibo a sal.
Não se nasce impunemente
Nas praias de Portugal.
            Poesias Completas – 1956 - 1967

Fernando Pessoa

Quando compões o cabelo
Com tua mão distraída
Fazes-me um grande novelo
No pensamento da vida.

Dá-me um sorriso daqueles
Que te não servem de nada
Como se dá às crianças
Uma caixa esvaziada.

Chamam-te boa, e o sentido
Não é bem o que eu supunha.
Boa não é apelido:
É, quando muito, alcunha.

A vida é um hospital
Onde quase tudo falta.
Por isso ninguém se cura
E morrer é que é ter alta.
   Quadras ao Gosto Popular – 1935

António Aleixo

Engraxadores sem caixa
Há aos centos na cidade,
Que só usam a tal graxa
Que envenena a sociedade.

Quem canta por conta sua
Quer ser, com muita razão,
Antes pardal, cá na rua,
Que rouxinol na prisão.

O teu amor, minha querida,
Livrou-me de me afogar
No mar imenso da vida
Onde supus naufragar.

Vim ao mundo sem saber
Que vinha a ser o que sou;
Agora morro sem querer
sem saber para onde vou.
  Este Livro que vos Deixo - Inéditos

Anónimo

Chorai fadistas, chorai,
que uma fadista morreu.
Hoje mesmo faz um ano
Que a Severa faleceu.

Lá nesse reino celeste,
Com tua banza na mão,
Farás dos anjos Fadistas,
Porás tudo em confusão

Até o próprio S. Pedro
À porta do céu sentado,
Ao ver entrar a Severa
Bateu e cantou o fado.

Ponde no braço da banza
Um sinal de negro fumo,
Que diga por toda a parte
O Fado perdeu seu rumo.

Severa, linda Severa,
Foste a princesa do Fado;
A rainha das fadistas
O sol do teu bem-amado

O fadinho da Severa
Vai direito ao coração;
Cantai o fado da musa
Da rua do Capelão.

 Eu vou cantar a Severa
Nesta bela ocasião;
O seu Fado é de encantar
Vai direito ao coração.

Quando a Severa faleceu,
O Vimioso adorado
Disse, vertendo lágrimas:
Morreu o mimo do dado!

Chorai fadista, chorai
Que a Severa se finou;
O gosto que tinha o Fado
Tudo com ela acabou.
           Cancioneiro Popular Português
                         Fim


Um comentário:

  1. Meu caro director deste espaço
    É assim, com esta diversidade, que este blogue está para lá da vulgaridade. Não só pelos assuntos que trata e bem relacionados com a nossa "aldeia", como vai até ao fim do mundo, com a divulgação desta poesia cujos autores são merecedores de todo o nosso apreço, com a devida vénia, esse imortal Fernando Pessoa.
    A propósito de Fernando Pessoa, a quem eu não atribuía o dom popular de fazer quadras, encontrei num alfarrabista um exemplar, editado em 1999 por Assírio e Alvim para Câmara Municipal de Lisboa, titulado "Quadras Populares" de Fernando Pessoa, que insere 132 quadras do autor, onde constam as que agora e em boa hora vêm à luz.
    Parabéns e que o ânimo individual não vos falte, para ultrapassar este período de desânimo quase colectivo.

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