domingo, 23 de fevereiro de 2014

Daniel Marques

O fado no fado da Vida…

Daniel Marques foi, como retratá-lo-ia Soeiro Pereira Gomes, um dos «filhos dos homens que nunca foram meninos».

Há quem se resigne à sorte, mas há também quem inspire o seu fado no fado da sua vida.
Daniel Marques é poeta? Só pode ser poeta quem bebe “das fontes nascentes do seu suor”.

Daniel Marques é fadista? Se no fado se encerram a «alma vencida» e as «esperanças já mortas»; se o fado é um «jardim d’esperança/e adega cheia de amor/para embriagar lembranças» mesmo de uma infância sofrida, a lira de Daniel Marques é o canto do «rio a correr/nas folhas verdes da vida”, que «sem haver consegue ver/um lindo mundo encantado.»

Daniel Marques foi, como retratá-lo-ia Soeiro Pereira Gomes, um dos «filhos dos homens que nunca foram meninos».
Nos Foros do Monte Novo, Concelho e Freguesia de Mora, nasceu no dia 2 de Fevereiro de 1942. Sem amargura confessa: «Guardei gado fui pastor/Ainda com pouca idade.»
De manhã muito cedo, partia para a escola da vida e de tarro e taleigo preparados carinhosamente pela mãe, corria vales e montes na companhia do seu gado.

Irmão de alma de Alberto Caeiro, que nunca guardara rebanhos, mas cuja alma era como um pastor, Daniel Marques também conheceu o vento e o sol e, entre o seu gado no meio do mato, «toda a paz da natureza sem gente, vinha sentar-se a seu lado.»

Numa manhã de pastoreio, Caeiro ter-lhe-á sussurrado: «sou do tamanho do que vejo/ não do tamanho da minha altura... ».
Daniel ouviu-o, ergueu-se e partiu para ver outros montes e vales, atravessar planícies traiçoeiras e enfrentar árduos trabalhos, até aportar na companhia inglesa APT, que se veio a denominar Telefones de Lisboa e Porto (TLP) e, posteriormente, PT (Portugal Telecom).

Na cidade, não abandonou o seu cajado. Agora, já não guardava rebanhos, mas conduzia as palavras pelos caminhos misteriosos da poesia.

O lirismo, a ironia, o sopro do vento, o correr das fontes, as imagens de menino, o convívio dos homens, a música da natureza colhida na solidão dos campos embala a poesia de Daniel Marques, grito de revolta e esperança, sussurro de amor e paixão, voz livre a cantar na imensidão da planície.

O povo, na voz daqueles que dele são, pede-lhe emprestadas as palavras, tornando-o, há muitos anos, um dos autores da Sociedade Portuguesa de Autores, com um número considerável de obras gravadas.

«Há poetas que são artistas/e trabalham nos seus versos/Como um carpinteiro nas tábuas!..» Disse-o Alberto Caeiro.

Sentado à sua mesa, enquanto sente correr o rio da vida, Daniel Marques, o menino-pastor, o operário-poeta, trabalha as palavras, polindo-as uma a uma, encaixa os seus versos, compõe o poema, fado da vida na vida de um fado.


DANÇAS DA VIDA

Eu nasci para o bailado
Onde todos vão dançando
E eu quedo-me contristado
E acordado vou sonhando.
Não queria ser dançarino
Deste baile mal dançado
Onde por ser pequenino
Só dança o seu próprio fado.
           
Ai as danças desta vida
Que nem a todos conforta
Há uns de alma vencida
Outros de esperança já morta
Se as danças fossem iguais
No baile que não dancei
Para o comum dos mortais
Era o baile que sonhei.

Nas ondas da ilusão
Há quem dance docemente
Enquanto outros de paixão
Dançam muito tristemente
E nas ondas da ternura
Há os que dançam também
Outros dançam na amargura
Das ondas que a vida tem.
                                  
                                    1988

 QUERER E NÃO SER

Sou um jardim sem ter flores
Sou adega sem ter vinho
Sou o berço dos amores
Onde falta teu carinho.

Sou rio d’água parado
Sou folha seca caída
Sou noite na madrugada
Numa vida sem ter vida.

Queria ser jardim d’esperança
E adega cheia de amor
Para embriagar lembranças
Que tenho da minha dor.

Queria ser rio a correr
Nas folhas verdes da vida
E para ti jamais ser
A folha seca caída.

Sou o que não queria ser
Queria ser o que não sou
Para ser tempo a esquecer
Quem seu amor me negou.

                        18.02.1991


QUEM IGNORA QUEM?

Nos fadistas, os seus fados
Quando por eles cantados
Deles parecem nascer
Pois não dizem de quem são
Músicos, poetas lhos dão
Mas ninguém fica a saber.

É bonito e por dever
Não custa nada fazer
Anunciar seus autores
Pois nada caiu do céu
Nem por milagre apareceu
Na boca dos seus cantores.

Pois se o seu é de seu dono
Não se dê ao abandono
Como fosse coisa morta
Tenham-se antes os cuidados
Dizer de quem são os fados
O que afinal muito importa.

Não confundam por favor
Intérprete com autor
São bem diferentes artistas
Intérprete é quem canta
O qu’o poeta lhe adianta
Que fez p’ra esses fadistas.

Os autores musicais
Aos poetas estão iguais
Com seu valor ignorado
Pois não se pode esquecer
Sem eles não pode haver
Fadistas cantando o fado.

                      Junho/2008      
  
            REGISTO 

Está verde fora de prazo
E com sua verde mente
Diz que o sol nasce a ocaso
E que vai pôr-se a nascente.

Chama ao nascente poente
P’ra que rime alhos com bugalhos
De pedagogia ausente
Troca meiguice por ralhos.

Mas que carga de trabalhos
Nesta mente em confusão
Cuja manta de retalhos
Não tem qualquer ligação.

E nem sequer contenção
No que diz a barlavento
Que só pode ter razão
Num falso convencimento.

No português que tormento
Inflige à morfologia
Não importa o tratamento
Desde que rime em grafia.

Mas alimenta a mania
Que poeta tem de ser
À custa de quem alia
Que o ajuda a convencer.

Culpas não deixam de ter
Por lhe darem cobertura
Só se não conseguem ver
A sua falsa estrutura.

E nesta minha postura
Critico por convicção
Qu’os que lhe dão cobertura
Também me hão-de dar razão.
                          
                       Janeiro/2009


MENINOS DO MEU PAÍS

Nos meus tempos de menino
Creio não haver brinquedos
Ou então foi meu destino
Que não os pôs nos meus dedos.

Não aprendi a brincar
Por que nunca fui criança
Nasci quase a trabalhar
Eis minha triste lembrança.

Guardei gado fui pastor
Ainda com pouca idade
Sentindo tormento e dor
Sem qualquer felicidade.

Meninos do meu País
Tenham mais sorte do que eu
Cada um seja feliz
Qu’é esse um direito seu.

                   Janeiro/2009
  
SER OU NÃO SER POETA

Quando leio bons poetas
Contemplo suas visões
Com o seu quê de profetas
A semear ilusões.

Na sua rara beleza
Vêem no feio bonito
E em toda a sua grandeza
Levam-nos ao infinito.

Quem os lê sente prazer
Fica mesmo extasiado
Sem haver consegue ver
Um lindo mundo encantado.

São estes os verdadeiros
Poetas de criação
Os outros são embusteiros
Poetas por pretensão.

             Março/2009
  
VELHINHA D’ALDEGALEGA

De dois séculos a caminho
No seu e em qualquer cantinho
Quem lhe quer bem a acarinha
Com tantos anos que tem
Nem sequer mostra porém
Ser assim já tão velhinha.
Se mantém a juventude
E se goza de saúde
Nossa Velhinha tão querida
É d’ amor de direções
Que ao longo de gerações
Lhe dedicaram a vida.

Velhinha d’Aldegalega
P’lo nascimento não nega
Ao seu Montijo d’ agora
Dá-lhe Coro e Cavaquinhos
Banda com muitos carinhos
E outras Artes que ela adora.
E assim à sua maneira
Honra bem sua bandeira
Seja cá dentro ou lá fora.

Eu ainda bem me lembro
Da 1º de Dezembro
Em concursos na Holanda
Concursos que então ganhou
Medalha d’ ouro conquistou
P’la sua distinta Banda.
Honramos o seu passado
No presente dedicado
Um futuro promissor
Bem merece esta Velhinha
Ser do Montijo a Rainha
E ter sempre o nosso amor.

                   Fevereiro/2010

CALDEIRADA DE PALAVRAS

Palavras de caldeirada
Nem de peixe dizem nada
Ficam sem ter tradução
Não têm qualquer sabor
Nem ouvinte nem leitor
Fazem a degustação.

Não têm qualquer mensagem
Nem clareza na imagem
A esclarecer qual o tema
Mas quem fez a caldeirada
Assim tão mal cozinhada
Diz que fez grande poema.

Pura mistificação
Que dá azo à ilusão
De gente pouco letrada
Não sabem analisar
Que acabaram de provar
Caldeirada estragada.

Ao provar sinta-se o gosto
P’ra não ficar mal disposto
Ou até envenenado
P’la maldita caldeirada
Que ao provar é rejeitada
Por um sabor mais letrado.

                    Junho/2010
  
APENAS P’LO QUE VALHO

Depois de trabalho tanto
Para obra construir
É justo vir entretanto
O seu valor a seguir.

Sem ser preciso pedir
Mas apenas p’lo que valho
Quero apenas conseguir
Vencer pelo meu trabalho.

Carta fora do baralho
Sou eu, a carta ignorada
E por isso o meu trabalho
É simples carta fechada.

Pode até não valer nada
Mas pode até valor ter
Mantendo a carta fechada
Nada se pode saber.

Sou forçado a dizer
Creio não me ficar mal
Qu’a ningém me hei-de vender
Tenho o meu valor real.

É este o meu capital
Que se mantém ignorado
Sou poeta musical
Tristemente mal-amado.

Creio bem não ser culpado
Meus amigos são quem são
Se pudessem me era dado
Da obra publicação.

É esta a constatação
Revés da nossa cultura
Se se é amigo ou não
Consta ou não a figura.
   
         Setembro/2008
  
MORA LINDA

Mora, tu és tão linda
E tens ainda
O teu encanto maior
Nas pequeninas ruelas,
Tuas janelas
Falam de amor.
Estás pertinho do céu
Com tudo o que Deus te deu
Nessa beleza tão rara,
Tuas paredes branquinhas,
Beirais de andorinhas
São a tua cara.

Mora, tu já és Rainha
Em mulher alentejana
Encerras muita virtude,
Apesar de seres velhinha
Tua alma não engana
Quando mostras juventude.
Um neto que tem o Tejo
Encosta-se à tua saia,
Quando pró mar se encaminha,
Abraça o Ribatejo
Para aí ser o Sorraia
E Coruche ser a madrinha.

Mora, a tua gente
Vive contente
Desde o nascer ao sol-pôr
E sempre a trabalhar
Para honrar
O seu valor.
Mora, os teus arrozais,
Trigo, milho e sobreirais
São parte do teu tesouro
Mora, tens tanta beldade
Que me dá vontade
Pedir-te namoro.

                  21.02.1992


SEM PRETENSÕES

Eu queria escrever a poesia
Com magia, na mais linda fantasia
E assim haveria, lugar p’rá filosofia
Eu diria, ser poeta noite e dia
Não escondia, o que muito bem fazia
Pois teria, sempre enorme freguesia
Porque faria, poemas de antologia
Nem escreveria, para rimar heresia
Mas temia, esta tão grande ousadia
E sabia, decerto alguém gostaria
Que bem lia, com prazer sabedoria
A luz que eu faria, em parte bem sombria
Onde enchia, a alma d’alguém vazia
Que fugia, de onde mal se sentia
Que de medo morreria, na mais lenta agonia
Nem trocaria, o Manel por Maria
Para lhe dar tristeza por alegria
E perdia, o hábito que é mania
Da teimosia, que a rima é poesia
Desistia, nem aos outros impingia
Letra fria, desconsolada tardia
Antes ouvia, a voz da maioria
Que pedia, finalmente houvesse um dia
Que nascia, em que jamais escrevia.



 Texto: Ruky Luky















3 comentários:

  1. Trazer ao conhecimento público estes valores locais, seja em que arte for, é fazer muito em prol da cultura. O Daniel é um poeta popular que muito estimo e do qual devia de haver um melhor conhecimento. O espaço público que cumpria, dentro do possível, a missão de tornar mais visível a obra de alguns poetas montijenses, a Nova Gazeta, na sequência da antiga Gazeta do Sul, teve de sucumbir, devido, também, à guerra que lhe foi movida pela edilidade montijense. Hoje só nos resta este blogue para essa tão ingente tarefa. Parabéns ao Rui e ao Daniel.

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  2. Muito obrigado amigo Rui Aleixo pelo texto publicado.
    Mais um grande contributo para a divulgação e perpetuação dos valores da nossa Terra.
    Bem hajam Amigos e continuem, pois os Montijenses virão um dia a agradecer-vos

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  3. NO MEU FADO O MEU DEVER

    Começo por dizer, sem de nada me envergonhar, de que ao ler uma, duas , três e ainda à quarta vez as lágrimas caíram-me a fio, ainda que as procurasse conter, tal é a força das palavras que a verdade lhe imprime.
    Creio ser este o maior elogio que posso fazer ao Rui Aleixo, que tal como o pintor coloca na tela as suas imagens, também o Rui com o seu saber e sensibilidade poética consegue transmitir à sua tela estética literária de forma emocional com o seu jeito muito peculiar.
    É um verdadeiro clássico com as palavras harmoniosamente combinadas, construindo belas imagens virtuais que se tornam reais aos olhos de quem as viveu e sentiu e as volta a sentir ao recordar, sendo impossível ficar indiferente.
    Por isso mesmo, o Rui Aleixo é um verdadeiro poeta da prosa, pelo que me cumpre felicitá-lo e agradecer-lhe com um grande abraço.

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