segunda-feira, 18 de agosto de 2014

D. Manuel I e o Montijo (3)

Montijo Visto Pelo Foral de 1514


No séc.XVI, o rio assumiu  importância fundamental para o desenvolvimento de Aldeia Galega do Ribatejo, cuja localização a tornou uma porta privilegiada de acesso à capital, com reflexos benignos no desenvolvimento dos transportes, das estalagens e do comércio, e disto nos dá conta o Foral de 15 de Setembro de 1514.
Imagem de Pier Baldi, séc. XVII. O
 cais de embarque não seria muito diferente , no séc. XV.


É Aldeia Galega do Ribatejo, que, em 1930, mudou o nome para Montijo, povoação antiquíssima, cujos registos remontam ao séc. XIII.
O concelho pertenceu à Ordem de Santiago de Espada, cuja sede se localizou em Palmela, e ganhou real autonomia, em 11 de Janeiro de 1540, quando o Mestre da Ordem confirmou a separação de Aldeia Galega de Alcochete e se pôs termo ao concelho de Sabonha.

Ao longo da sua História, Aldeia Galega recebeu várias prerrogativas reais e, em 14 de Setembro de 1514, D. Manuel I, O Venturoso, concedeu-lhe Foral.
Foral ou Carta de Foral é um diploma dado pelo rei, ou por um senhorio laico ou eclesiástico, a determinada terra, contendo normas que disciplinam as relações dos seus povoadores ou habitantes entre si e destes com a entidade outorgante.
Diz Francisco Ribeiro da Silva que «Uma leitura rápida dos forais leva facilmente à ideia de que os beneficiários dos tributos eram o rei, a igreja, os senhorios laicos ou eclesiásticos a quem o rei outrora fizera doação. Raramente são os concelhos, o que mais uma vez e até certo ponto contraria a ideia feita, mas não verdadeira, de que os forais foram dados em favor dos municípios ou do municipalismo.»

O Foral que D. Manuel I outorgou a Aldeia Galega do Ribatejo é um documento  onde se fixam os direitos e os tributos a pagar ao(s) senhorio(s), mas também as isenções e privilégios, e, concomitantemente, se regularizam, sobretudo, as estalagens, os transportes e as portagens - passagem e venda de mercadorias.

A primeva Aldeia Galega era, essencialmente, uma povoação rural, cujo núcleo principal se localizava a oriente da vila, onde se edificou a Igreja de S. Sebastião, primeira Igreja do concelho.
No rio que a banhava, Aldeia Galega procurava o peixe, o sal e a força motriz para mover os moinhos, que demonstram a intensa actividade moaogeira da localidade.
No século XIV, estava construído o porto novo de Aldeia Galega, que passou a concorrer com os portos de  Alhos Vedros e do Barreiro e se transformou, paulatinamente, na principal porta de acesso a Lisboa e passagem obrigatória para quem demandasse o sul do País ou o estrangeiro.
A vila, até então rural por excelência, descobria no rio um novo pólo de desenvolvimento, baseado no transporte de gentes e mercadorias. Quando lhe foi outorgado foral, Aldeia galega corria em direcção rio, sem ter abandonado o campo.

O intenso movimento de pesssoas e de bens originou o estabelecimento de estalagens e o desenvolvimento dos transportes de pessoas e mercadorias, que não escaparam à atenção dos inquiridores que o Rei enviara a Aldeia Galega, assim como a «todollos lugares do Reyno».

O Foral liberalizou o estabelecimento de estalagens e proibiu, por um lado, «que no ditto lugar (Aldeia Galega)nam haja estalagem privilligiada assy da ordem como do conselho», e, por outro,  autorizou que qualquer pessoa pudesse hospedar em sua casa e dar cama e de comer a «quaisquer pessoas, assim de graça como por dinheiro, assim de noite como de dia».
Quanto às bestas, em que as pessoas se faziam transportar assim como os seus bens, tinham de, em primeiro lugar, permanecer na estalagem, mas «quando na ditta estalagem não poderem bem caber as bestas declaramos que se possam por aquella vez agasalhar onde quiserem assy de graça como por dinheyro».
De tal modo se desenvolveram as estalagens que, no século XVIII, as estalagens de Aldeia Galega do Ribatejo ainda eram consideradas das melhores do País.

A postura municipl, que regulava a «barca da carreira», não era respeitada, reinando assim uma forte indisciplina no que concerne ao cumprimento de horários e  à prática de preços, causando a «desordenança das barcas» muitos transtornos e despesas aos passageiros

Por isso, o Foral determinou o cumprimento da dita postura e que o «barco da carreira» observasse os horários, quer houvesse muitos ou poucos passageiros, não podendo ser alterados os horários e os preços em função do número de passageiros e/ou de mercadorias a transportar.
À hora (maré) prevista, os barqueiros eram obrigados a partir, a «tanger o búzio e a cumprir todos os costumes e obrigações da dita passagem.»
Porém, se a «barca de carreira não pudesse levar mais gente nem cousas», e aproveitando a mesma maré, era permitido ao barqueiro da barca seguinte negociar livremente o preço da passagem e do transporte de mercadorias, mas, caso as partes não alcançassem acordo, caberia aos juizes ordenarem que partisse logo que houvesse maré de feição, pagando-lhe «por toda viagem daquella vez duzentos reaes somente sem mais outra nenhuma cousa por ora seja cõ muytos ou com poucos (passageiros e mercadorias)».

Além de densificar a postura municpal, o Foral  estabeleceu um regime sancionatório para os barqueiros e arrais incumpridores, sujeitando-os a uma multa de dez cruzados pela violação do horário e dos preços.

A importância de Aldeia Galega como porto principal para a ligação da capital do Reino ao sul do País e ao estrangeiro acabou por ser confirmada e ganhou acrescida projecção quando o Correio-Mor, Luís Afonso, estabeleceu ali a Posta, carreira de Correios para o sul do país e para a fronteira espanhola, em 1533.

Na actualidade, olhando-se para a época em que o Foral lhe foi atribuído, alcança-se Aldeia Galega do Ribatejo como um importante entreposto comercial. Ali aportavam as mais desvairadas gentes, ali comerciavam, ali pernoitavam, dali partiam para outras paragens com as suas mercadorias, sobretudo para a capital do Reino, que se animava  com a empresa dos Descobrimentos, apesar da peste que, por vezes, a assolava. Não havia uma feira em Aldegalega, mas tão-só um agitado e intenso comércio.

O exame minucioso das mercadorias e das pessoas que deviam ou não pagar portagem, das que estavam isentas e das condições que fundamentavam essa isenção acaba por ocupar substancialmente o conteúdo do foral. Mas não é tema que seja por ora e aqui abordado.

Que bens e pessoas se transicionavam em Aldeia Galega do Ribatejo, alguns dos quais se destinavam ao abastecimento das naus que «davam novos mundo ao mundo»?

Através das taxas de portagens previstas no foral  é possível identificá-los:
Pão, vinho, sal, fruta verde, hortaliça,  legumes, pescado, marisco, queijos secos, manteiga salgada, trigo, centeio, cevada, milho, painço, linhaça, aveia, vinagre, melões, queijadas, biscoitos, farelos,  castanhas e nozes verdes e secas, ameixas passadas, amêndoas, pinhões por britar, avelãs, boletas, mostarda, lentilhas, legumes secos, cebolas secas, alhos, sumagre1,  azeite, mel, unto.
Especiarias, boticarias, tinturas e afins.
Panos de lã, linho, seda e algodão.
Couros curtidos ou por curtir, calçado, peles de coelho ou cordeiro e de qualquer outra pelitaria.
Cera e cevo.
Prata lavrada, aço, estanho, ferro, telha e tijolo, louça de barro, vidrada ou não, objectos de pedra, de barro e de pau.
Objectos feitos de esparto, palma ou junco. Vassouras
Erva, vides, canas, carqueja, tojo, palha e lenha.
Pez, resina, breu, alcatrão, cal e sabão.
Escravo ou escrava ainda que seja parida.

Estas eram as principais mercadorias à disposição dos nossos avoengos, embora nos choque, hoje, considerar uma pessoa (escravo) mercadoria.

A pesca, ao contrário do que poderíamos presumir nos nossos dias, não é assunto substantivo do Foral, indiciando que não terá sido a actividade principal ou única de quem a ela se dedicava.
O Foral não se refere aos pescadores e nele encontrámos um único parágrafo referente ao pescado, que assim determina: «Paguaze do pescado sua dizema e dr.to ordenado, cõ declaração que do que tomarem para comer não pagarão se não dizema a D's e do que tomarem cõ rede pee aynda que seja ia pera vender pagarão soomente a dizema velha e não a nova. E do que tomarem aa fisga, ou aa mãao nam paguaram dr.to Quando os pescadores sayrem, cõ o seu pescado fresco em terra averão delle seu conduto por aquelle dia que ouverem hy de repousar sem delle pagarem dizema.»

Isto é, o pescado estava sujeito à dízima, que consistiria em 10% do valor do pescado. Porém, «do que (os pescadores) tomarem para comer não pagarão senão se não dizema a D's». A dízima a Deus valia 8,3% do pescado, ou seja, por cada doze peixes, um era para a Igreja.

«Dízima velha e não a nova» pagariam os que pescassem com rede-pé (rede de arrastar), ainda que fosse para vender.
Seguindo Francisco Ribeiro da Silva, a dízima velha do pescado trazido às terras da Ordem de Santiago por pescadores residentes nas áreas da mesma Ordem pertencia à dita Ordem; a dízima nova era paga ao rei.
Aldeia Galega do Ribatejo só estava sujeita à dízima velha, ao contrário de outras localidades em que todo o peixe pescado estava sujeito a uma dupla dízima: a dízima velha e a dízima nova, no montante de cerca de 20%.

Quem pescasse com meios rudimentares, “à fisga ou à mão (cana ou linha) “estava isento de dízima”.

Por fim, o Foral estabelece que «Quando os pescadores sayrem, cõ o seu pescado fresco em terra averão delle seu conduto por aquelle dia que ouverem hy de repousar sem delle pagarem dizema.»
Conduto era o privilégio pelo qual os mestres dos navios e os pescadores eram autorizados a retirar do pescado fresco, que trouxessem para vender, uma porção para a sua alimentação de cada dia, de acordo com o número de pessoas que viessem no navio.

O pescado estava ainda sujeito à taxa de portagem a pagar por «homens de fora della que hy trouxerem cousas de fora a vender ou as comprarem hi e tirarem para fora da Villa e termo», nomeadamente, pescado e marisco.

No século XVI, o rio assumiu importância fundamental para o desenvolvimento de Aldeia Galega do Ribatejo, cuja localização a tornou uma porta privilegiada de acesso à capital, com reflexos benignos no desenvolvimento dos transportes, das estalagens e do comércio, e disto nos dá conta o Foral de 15 de Setembro de 1514.
Ao lado de uma comunidade rural, «os homens trabalhadores», afirmava-se uma outra, a dos mareantes. Esta construiu a Capela de Nossa Senhora da Conceição, na Igreja do Divino Espírito Santo, em 1575; aquela instituiu, no mesmo templo, a Capela de Nossa Senhora da Purificação, em 1607.
Assim se ergueu Montijo.


(1) - Sumagre – Arbusto cujas folhas e casca eram utilizadas no curtimento de couros e peles e como tintureira na  indústria têxtil. Pode também ser usado como condimento, extraído dos frutos.


Ruky Luky

2 comentários:

  1. Muito interessante. Se pensarmos o que sofremos hoje, quer com transportes quer com impostos, vamos ver que é uma história que já vem de bem longe.
    Parabéns

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  2. Julgo saber que quer a Igreja de São Sebastião, quer a do Espírito Santo são ambas originárias do século XV, sendo a igreja paroquial ou do Espírito Santo erecta em paróquia em 1528 e feita de novo no segundo quartel do século XVI.
    Contudo, no concelho do Montijo e anterior às igrejas da antiga Aldeia Galega será certamente a Igreja de Canha, doada pelo Bispo de Lisboa à Ordem de Santiago em 1252 .... e até a própria Igreja de São Jorge de Sarilhos que, de acordo com os documentos coligidos por Mário Balseiro Dias nos Arquivos da Ordem de Santiago, fora edificada em 1390 com licença do então Bispo de Lisboa, D. João Anes (Arcebispo desde 1394).

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