segunda-feira, 11 de junho de 2012

Morrer em Montijo

Morrer em Montijo

Igreja de S. Sebastião garantia da sacralização do cemitério e da salvaguarda das almas
No correr dos séculos XVI, XVII e XVIII, o medo da morte e do terrível inferno, levou a que a Santa Casa da Misericórdia de Montijo tivesse sido beneficiada de generosas doações para celebrar missas de sufrágio pela alma do doador, que julgava, assim, salvaguardar a alma das labaredas de satã.
Proteger a alma contra o poder do demónio, descansando em paz, levou à prática dos enterramentos ad sanctos, isto é, no interior ou nos adros das igrejas e nos claustros e outras dependências conventuais, que se difundiu, na Europa, desde a Alta Idade Média.

Em Aldegalega do Ribatejo, Montijo, as igrejas receberam milhares de cadáveres, até ao século XIX.
A localização das sepulturas, no interior ou no adro da igreja e dentro daquela a proximidade ao altar, denunciava a classe social e a situação social do finado.
No século XVI, por exemplo, uma sepultura no interior da igreja custava, em Montijo, 1000 reais e a cova só era cedida mediante pagamento prévio. Por outro lado, à segunda-feira, depois da missa, os «clérigos saiam com a cruz e água benta, e com os seus Responsos tangendo os sinos andavam pela igreja e adro lançando água benta pelas sepulturas [o que] traz muita devoção aos vivos e proveito aos defuntos que sempre esperam pela oração e sufrágios da madre Igreja».
A inexistência de uma igreja criava problemas delicados à população, que acabava por enterrar os seus mortos na lixeira, como aconteceu em Sarilhos Grandes, até à edificação de uma igreja, no século XVI.
Há notícias de enterramentos, em Montijo, nos Conventos de Nossa Senhora da Conceição e Nossa Senhora da Graça, este corresponde à actual Esquadra da Polícia e aquele estava localizado entre a Av.ª Luís de Camões e a Praça Brasília e foi consumido por um incêndio, no início do século XX; na Igrejas do Divino Espírito Santo, da Misericórdia e de S. Sebastião e na Ermida de S. António; em Canha, na Igreja de S. Julião e, em Sarilhos Grandes, na Igreja de S. Jorge.


 O primeiro cemitério construído em Montijo fora do espaço da igreja foi obra da Santa Casa da Misericórdia.
Em Junho de 1683, a Irmandade pediu autorização ao Arcebispo de Lisboa para sepultar os muitos pobres que faleciam no seu hospital no pátio da igreja, «por não ter cemitério separado para esse efeito», e então o Arcebispo que fizesse «esmola de conceder licença para que o pátio se benza e sejam sepultados os pobres que faleciam no Hospital (…)».
D. Luís de Sousa, Arcebispo de Lisboa, deferiu o pedido em 20 de Março de 1684 e em Maio desse ano o pátio foi benzido, passando a receber os pobres que viessem a falecer no Hospital, continuando os Irmãos a serem sepultados no interior da Igreja.
 
Planta das sepulturas existentes no interior da Igreja do Divino Espírito Santo, in Livro das Sepulturas, 1685.
Foi em Janeiro de 1841, que o presidente da Junta da Paróquia da Freguesia do Divino Espírito Santo alertou o presidente da Câmara Municipal de Aldegalega [Montijo] para a urgente necessidade de se construir um cemitério, «visto que dentro da Igreja [do Divino Espírito Santo] se não podem enterrar os cadáveres pelos muitos que ali se têm enterrado.»

A autarquia, depois de ter ponderado sobre o assunto, decidiu construir o cemitério no terreno anexo à Ermida de S. Sebastião, «não só em razão da proximidade da vila e extramuros da mesma, mais ainda por ficar junto à dita Ermida, objecto muito preciso num cemitério.
No ano seguinte, em Abril, foi adjudicada a construção do cemitério. Por essa altura, o pároco e presidente da Junta da Paróquia, D. João de Noronha, informava ao presidente da câmara municipal de que «é já impossível continuar-se na prática de enterramentos: a multiplicidade de cadáveres amalgamados em todas as sepulturas [dentro da Igreja do Divino Espírito Santo] torna aquela terra em perfeita putrefacção, a ponto tal, que não deixando consumir os cadáveres, aparece na sua abertura uma exalação de miasmas de que é preciso evitar o seu contacto para não sofrer perturbações de cabeça.» O pároco alertava ainda para «as exalações pútridas que continuamente estão emanando das sepulturas» e para os perigos que dali derivavam para a saúde pública, uma vez que se aproximava o Verão e a igreja estava localizada no coração da vila.
Apesar do retrato traçado pelo pároco, os fiéis ocorriam pontualmente à celebração dos ofícios religiosos.

Em 7 de Junho de 1843, iniciaram-se as obras de construção do cemitério, feitas a expensas dos cofres do município e da Irmandade do Santíssimo Sacramento. Para a edificação da cerca foi aproveitada a pedra oriunda da demolição do muro do logradouro do Convento dos Frades da Graça.
No ano seguinte, no dia 20 de Janeiro, a câmara municipal deliberou fazer «uma festa a S. Sebastião, e depois dela se proceda à benzedura do cemitério público para se começar ali a fazer os enterramentos.»
Em 3 de Fevereiro de 1844, o cemitério público recebeu o primeiro cadáver.


Vista aérea da cidade de Montijo. Em primeiro plano, o cemitério de S. Sebastião, primevo de Montijo.

 Contestação aos Enterros ad Sanctos e o Cemitério de Sarilhos Grandes

 Segundo Adérito Tavares, «na segunda metade do Século XVIII, porém, novo espírito iluminista fez surgir críticas vigorosas a estas práticas inumatórias, sobretudo devido às «emanações pestilentas e ao espectáculo macabro das ossadas acumuladas nos recintos das igrejas.»

Em 1787, Pina Manique nomeou uma equipa de juristas e médicos para procederem à observação das condições em que se faziam os enterramentos em Lisboa, acabando o Intendente por propor a criação de cemitérios públicos na cidade de Lisboa.
Contudo, só em 1835, pelo Decreto de 21 de Setembro, de Rodrigo da Fonseca Magalhães se determinou que «em todas as Povoações serão estabelecidos cemitérios públicos para neles se enterrarem os mortos.»
No preâmbulo, o legislador explica que uma das razões que conduzira ao insucesso das anteriores iniciativas se prendia com o facto de «a autoridade que vedava os enterros nos templos, não tornava efectivos os estabelecimentos dos cemitérios, ou apenas lhes designava porções de terreno, abertos, e devassados por animais, com escândalo dos fiéis.» Por outro lado, continuava o legislador, «a ignorância da Idade Média transformou [o enterro nas igrejas] em dever de religião, cedendo a sugestões insidiosas dos que derramavam a fatal crença de que alcançariam a glória das almas aqueles cujos corpos jazessem em companhia das imagens dos Santos, dentro dos templos sagrados.»
O decreto de 21 de Setembro de 1835 atribuía às câmaras municipais a competência para estabelecer cemitérios.

A resistência e a contestação popular aos enterros nos cemitérios públicos, que foi o copo que fez eclodir uma revolta, em 1846, manteve-se, em Aldegalega/Montijo, pelo menos, até 1887.
O ofício que o Administrador do Concelho de Aldegalega/Montijo remeteu ao Governador Civil, em Outubro de 1851, caracteriza bem a insatisfação popular:
«(…) Na Freguesia de S. Jorge de Sarilhos Grandes enterram-se ainda os cadáveres  na Igreja, não só porque nem a Câmara tem meios suficientes  para acudir a esta obra de suma transcendência e necessidade nem os Povos do Município podem suportar mais impostos como também pelos prejuízos e inveterados preconceitos dos moradores da dita freguesia que dificilmente se poderão habituar a ver os cadáveres fora da igreja, a qual querendo o penúltimo pároco João Francisco de Borges da Lança por ocasião de se reparar fazer assoalhar toda [a Igreja de S. Jorge] sem covatos, não foi possível consegui-lo, e os que mais concorriam para as obras, desde logo protestaram não mais prestar a menor quantia, além de influírem os demais a uma tenaz oposição (…) .»
Isto é, dependendo a realização das obras da Igreja do concurso popular este só foi manifestado com a garantia de que se manteria o enterro no interior da igreja.
Apesar da resistência da população de Sarilhos Grandes, a situação tornou-se insustentável.

Em Setembro de 1857, o Regedor da Paróquia, José Miranda Roldão, enviou ao Administrador do Concelho o seguinte ofício:
«Participo a Vossa senhoria que hoje pelas duas horas da tarde, pouco mais ou menos, vieram a minha casa queixar-se os habitantes desta terra, em número de doze ou treze, por causa de um enterro que teve lugar nesta freguesia. O caso foi assim: foram para enterrar o cadáver no primeiro sítio que o sacristão designou e logo deram com um corpo; fizeram a segunda cova (e) aconteceu o mesmo, terceira o mesmo, de sorte que à sexta escavação é que puderam introduzir o cadáver por entre mais corpos, de maneira que o mau cheiro já não deixava cobrir o corpo com terra porque ninguém o suportava (..) Cenas destas têm aqui acontecido mais de uma dúzia de vezes, principalmente fazendo calor (…). O Povo grita, o Povo clama e eu vejo que tem muita razão. Principalmente os que assistem em roda da Igreja já têm presenciado coisas que chocam, como porcos a fossar nas sepulturas e tirarem os ossos para cima para roerem, e cães a escavar (…). É uma cena bem desagradável presenciarem os habitantes estas coisas em frente das suas casas, pois nesta terra são as casas muito em cima da Igreja e esse pequeno recinto é que nos serve de cemitério.»

Mais sete anos suportaram os habitantes de Sarilhos Grandes este cenário de horror.
Em 1862, foi aberto o procedimento para a construção do cemitério, cuja obra ficou concluída em 1864. Sagrado no dia 3 de Junho do mesmo ano, recebeu o primeiro cadáver em 17 de Julho.


Ruki Luki

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