terça-feira, 20 de março de 2012

Em Benguela havia uma velha ponte cais.

Em Benguela havia uma velha ponte cais.

Corríamos por ela dentro como se quiséssemos saltar a linha do horizonte, que nos parecia ali ao alcance das nossas mãos.

Era na ponte que pescávamos, na ponte nos divertíamos e era na ponte que sonhávamos os grandes cruzeiros da vida e viajávamos sem bilhete para as estrelas que o sol desenhava no esverdeado do mar.

À tardinha, recolhíamos ao fundo da ponte e já com a noite a anunciar-se nadávamos em silêncio.

Era à velha ponte que vinham atracar os pequenos barcos de cabotagem. Era na velha ponte que descansavam sabe-se lá de que canseiras.

A ponte tinha a sua própria vida, que escondia para si, mas era também o cenáculo dos encontros da vida.

Comecei a nadar junto à ponte. E comecei a afoitar-me deixando os seus pilares. Longe, cansado, desejava-a por perto e alcançando-a sentia-me seguro e reconfortado. Em casa, lembrar-me-ia dela? Para quê se sabia que ela ali estava eterna ao sabor das marés, resistindo às calemas, não regateando o seu abrigo, aceitando a riqueza e firme erguendo-se para que os pobres pudessem admirar o fim dum dia prenúncio do dia novo.
  

   








                                                         Palácio do Governo Provincial

Cresci junto à ponte. Não trocámos palavras, apenas afectos, que se geraram no lado insondável da vida. E sempre que a apetecia, nesta busca intensa que é saber da vida e dos seus caminhos, ali estava a ponte silenciosa, mas benévola, aceitando naturalmente as minhas ausências e rejubilando com a minha presença.

A ponte parecia-me indestrutível, daquelas obras que os deuses sempre ergueram em honra dos seus deuses. Impunha-se ao mar, fazia assobiar o vento e tinha a areia a acariciar-lhe os pilares.

Olhei um dia distraído com os olhos de quem já vira o sol pôr-se tantas vezes que já lhe perdera a conta e penso que foi por viver apaixonado pelo sol e encantado pela lua e perdido nas estrelas que ensinam ao leão os trilhos na savana que não reparara na primeira ferida, não ouvira o primeiro queixume, o primeiro anúncio do seu fim. Sempre a imaginara eterna.


                                             Igreja de N.ª Senhora do Pópulo

Não sei da velha ponte cais de Benguela. Sei que me levou a alcançar o horizonte. Sei que foi meu porto de abrigo e avenida de liberdade. Sei que tudo me deu e nada me exigiu. Sei que quando a quis se dispôs e quando, se porventura a esqueci, não se magoou. Sei que a ponte envelheceu de tal monta, que já não me permitia que caminhasse nela em direcção ao infinito, para que eu o alcançasse no meu próprio voo.

Também eu me fui afastando naturalmente da ponte.

A vida segue o voo dos pássaros, mas retém-se no coração dos homens. Parti e levei, sei lá em que parte de mim a guardei, a velha ponte cais de Benguela. Ainda hoje – basta querer – a evoco, e volto para cima dela e percorro os caminhos que só ela me ensinou e que só eu assim aprendi – os meus caminhos, os caminhos do meu horizonte, as avenidas da minha liberdade.


                                                  O então Palácio do Comércio

Dizem que a ponte se desmoronou. Veio uma calema medonha e não respeitou a fraqueza de tanta velhice. Dizem, mas não sabem que mentem. A ponte está dentro de mim. Mora não na minha saudade, mas na presença alegre da partilha íntima dos meus afectos, dos meus receios, da minha indómita vontade de alcançar sempre um novo horizonte.

                                              Igreja de N.ª Senhora de Fátima

Deito-me no último pilar desnudo da velha ponte cais de Benguela e adormeço ouvindo o mar, embalado pelas casuarinas, encantado pelo luar. Sei que o vento em breve soprará suave e levar-me-á então para lá onde de madrugada cantam os martrindindes a anunciar a alva aurora dum novo ser, para que lá longe, no silêncio do Tchangonge, lá onde vivi em felicidade, me erga então dos braços da minha doce e bela avó, como velha ponte cais dos meus filhos.

Havia em Benguela uma velha ponte cais. E tinha um farol...

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