segunda-feira, 14 de outubro de 2013

A Roda

Casa de Expostos

A Rua da Graça é escura. À noite, a ténue chama dos raros candeeiros a petróleo não alcança a extrema da vila onde se localiza a Ermida de S. Sebastião. Contígua à ermida há uma casa, aparentemente devoluta pelo silêncio que a envolve...

Há um vento que sopra desde os primeiros tempos, que não sabemos quando aconteceram, e a esse vento chamamos tempo. E o tempo levanta uma ténue nuvem de poeira, que se vai depositando sobre as coisas, a que chamamos memória. Descobrir a memória do tempo é contarmos sem pretensão a história das coisas e das pessoas da terra que nos acolhe.
Recuemos no tempo. Século XVIII… XVII…
 A Rua da Graça é escura. À noite, a ténue chama dos raros candeeiros a petróleo não alcança a extrema da vila onde se localiza a Ermida de S. Sebastião.
Contígua à ermida há uma casa, aparentemente devoluta pelo silêncio que a envolve. Um vulto destaca-se na noite fria envolto em grossa capa. Desaparece na escuridão. Nada se distingue. Passados escassos momentos, de passo apressado, envolve-se, de novo, na escuridão da vila. Ninguém o viu – ou se o viu ignorou-o. Ignora-se sempre quem se dirige para aqueles lados, àquela hora, não vá o Corfadário tecê-las. O que faz ali aquela criatura, naquela noite fria? A casa responde à pergunta.
O silêncio da casa fora interrompido pelo tocar da sineta e pelo leve chiar de uma roda. Uma mulher, de aspecto pesado, levanta-se, faz uma ligeira pausa e lentamente dirige-se para a porta. Não a abre. Sabe que não o deve fazer. Conhece bem as regras. O silêncio é de ouro e não se deve ver, ouvir e falar. Baixa-se e da roda retira mais uma criança abandonada, um desvalido da sorte. Volta a colocar a roda na posição inicial. Repara nas roupas monogramadas, na boa qualidade dos tecidos e murmura aos seus botões que é filho de gente rica que passou à condição de Exposto da Roda. A criança chora. Aconchega-o. Mais tarde, redobrando a criança o choro, corre à casa da ama-de-leite e acorda-a. Há um menino para alimentar. As duas mulheres perdem-se na madrugada gélida. No dia seguinte a criança receberá o nome de Manuel e será levada para a Roda dos Expostos de Lisboa.
 A Roda dos Expostos de Aldegalega do Ribatejo localizava-se junto à Ermida de S. Sebastião. O livro de Descrição Geral dos Bens Próprios do Município de Aldegalega, elaborado na segunda metade do Século XVIII, descreve-a assim:
“Ermida de S. Sebastião e casas anexas com seu quintal contígua ao cemitério público, com sua sacristia, uma pequena casa de entrada e dois quartos onde outrora era a Roda dos Expostos”.
A rodeira recebia, no final do século XVII, $524, que eram suportados pela Câmara Municipal de Aldegalega. O cofre municipal era também responsabilizado pelas despesas com o enxoval para os expostos, o transporte dos desvalidos da sorte para a Roda de Lisboa e pelas remunerações às amas-de-leite e amas-secas.
Registe-se por todas, o nome de Antónia Reveza, que foi rodeira em 1798.

P.S. Rua da Graça = R. Joaquim de Almeida

Ruky Luky


Um comentário:

  1. Para além da informação histórica e social, a beleza literária da descrição do acto simbólico, que é revestido da pobreza e da dor, de quem tem de se apartar de um ente querido e indefeso. Também o apoio conjunto da Igreja e da Municipalidade, para tornear a desgraça e evitar a perda de vidas humanas. Um pedaço de vida esculpido em literatura.

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