Casa de
Expostos
Há um vento
que sopra desde os primeiros tempos, que não sabemos quando aconteceram, e a
esse vento chamamos tempo. E o tempo levanta uma ténue nuvem de poeira, que se
vai depositando sobre as coisas, a que chamamos memória. Descobrir a memória do
tempo é contarmos sem pretensão a história das coisas e das pessoas da terra
que nos acolhe.
Recuemos no tempo. Século XVIII…
XVII…
Contígua à ermida há uma casa,
aparentemente devoluta pelo silêncio que a envolve. Um vulto destaca-se na noite
fria envolto em grossa capa. Desaparece na escuridão. Nada se distingue. Passados
escassos momentos, de passo apressado, envolve-se, de novo, na escuridão da
vila. Ninguém o viu – ou se o viu ignorou-o. Ignora-se sempre quem se dirige
para aqueles lados, àquela hora, não vá o Corfadário tecê-las. O que faz ali
aquela criatura, naquela noite fria? A casa responde à pergunta.
O silêncio da casa fora
interrompido pelo tocar da sineta e pelo leve chiar de uma roda. Uma mulher, de
aspecto pesado, levanta-se, faz uma ligeira pausa e lentamente dirige-se para a
porta. Não a abre. Sabe que não o deve fazer. Conhece bem as regras. O silêncio
é de ouro e não se deve ver, ouvir e falar. Baixa-se e da roda retira mais uma
criança abandonada, um desvalido da sorte. Volta a colocar a roda na posição
inicial. Repara nas roupas monogramadas, na boa qualidade dos tecidos e murmura
aos seus botões que é filho de gente rica que passou à condição de Exposto da
Roda. A criança chora. Aconchega-o. Mais tarde, redobrando a criança o choro,
corre à casa da ama-de-leite e acorda-a. Há um menino para alimentar. As duas
mulheres perdem-se na madrugada gélida. No dia seguinte a criança receberá o
nome de Manuel e será levada para a Roda dos Expostos de Lisboa.
“Ermida de S. Sebastião e
casas anexas com seu quintal contígua ao cemitério público, com sua sacristia,
uma pequena casa de entrada e dois quartos onde outrora era a Roda dos
Expostos”.
A rodeira recebia, no final do
século XVII, $524, que eram suportados pela Câmara Municipal de Aldegalega. O
cofre municipal era também responsabilizado pelas despesas com o enxoval para
os expostos, o transporte dos desvalidos da sorte para a Roda de Lisboa e pelas
remunerações às amas-de-leite e amas-secas.
Registe-se por todas, o nome
de Antónia Reveza, que foi rodeira em 1798.
P.S. Rua da Graça = R. Joaquim de Almeida
Ruky Luky
Para além da informação histórica e social, a beleza literária da descrição do acto simbólico, que é revestido da pobreza e da dor, de quem tem de se apartar de um ente querido e indefeso. Também o apoio conjunto da Igreja e da Municipalidade, para tornear a desgraça e evitar a perda de vidas humanas. Um pedaço de vida esculpido em literatura.
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