Carta de Cruz Magalhães
Luís Elói Calado Nunes. Aldegalega do Ribatejo, 19.06.1866 - Santarém, 16.09.1918. |
O Meu Moinho
A Cruz Magalhães
À luz do sol poente
Vejo
aquele moinho trabalhando…
Estou-o comparando
A
esta vida, que tão breve passa!
Movem-lhe
as velas alternadamente
O
vento da Fortuna e da Desgraça.
E,
sem piedade, no seu giro, a mó
-
a convivência humana – meu amigo,
Reduzindo-o
a pó,
Vai
triturando o trigo:
O
Amor, a Fé, os Sonhos, a Ilusão,
Em suma: o coração.
Mas
o moleiro – a alma – vai cantando
Ou
triste ou jovial, de quando em quando.
Luís Calado Nunes
«Eu
quero propalar, finalmente, tudo que julguei e julgo, do teu carácter, do teu
coração, da tua alta e culta inteligência. E do teu talento artístico, também
como poeta, músico, caricaturista, desenhador, etc., etc. Tu foste modesto em
extremo, Amigo de quarenta anos. Nasceste numa linda vila – Aldegalega – talvez
dela te viesse a modéstia.»
Numa Folha de Hera
Envio-te esta humilde
folha de hera
Tradicional emblema da
Amizade,
Que a ausência não
consome, não altera.
Sou-te leal, mantenho a
mesma fé.
Ao veres esta folha com
saudade,
Faze de conta que me tens
ao pé.
Mas tu, pensando em mim,
não digas: era
Antes repete com firmeza:
é.
Luís Calado
Nunes
«Tu,
humorista exímio; tu, cavaqueador incomparável; tu, cuja inteligência
encantadora, ao serviço de uma figura insinuante, transpunha os limites dos
conhecimentos humanos, de todos podendo falar com brilhantismo, quase sempre
com profunda erudição!... Tu, que até sabias de cor «Os Lusíadas».
Falei
do teu humorismo. Não se revelou só em soberbas ironias epigramáticas, postas
em verso, saía-te espontâneo na conversação. Recorto uma anedota. Mandaste-ma
numa carta, escrita de Ponta Delgada:
“Sabes
uma coisa que nestes longuíssimos dias me tem feito, às vezes, sorrir?
É
um criado do hotel. É original e define-se assim: se a gente o chama, não ouve;
se ouve, não entende, mas se entende, não faz caso, e se faz
caso…esquece-se!”».
Retrato
Este…Não
tinhas mais de treze anos. É lindo!
Uma
rosa em botão que vai agora abrindo.
Ponde
passas fica um luminoso rastro,
Como
se ali passasse incandescente um astro.
Há
no teu coração, esplêndido de sol,
Cantando
a toda a hora um doido rouxinol
Ainda
não deixaste o vestidinho curto,
Mas,
quando sais à rua, olhas p’ra trás, a furto,
Ingenuamente
a ver se a fímbria dele arrasta.
A
curva do teu peito, airosamente casta,
Começa
de avultar. Lembra um barquinho, quando
fresca
brisa lhe vai as velas enfunando…
Ontem,
na missa, viste um jovem de luneta;
O
Cupido apontou esta primeira seta;
Mas
não a despediu, que o moço enamorado
Seguiu-te
até à porta e foi-se envergonhado.
Não
hás-de esquecer, nem ele te esqueceu,
Mas
pensa agora mais no exame do Liceu.
Luís
Calado Nunes
«Nunca
te louvei bastante a coragem, a tenacidade, a valentia cerebral, com que,
depois de quarenta anos, conseguiste fazer o curso de grego, nos dois anos da
praxe.
Tinhas
o Curso Superior de Letras – Recurso Inferior de Tretas, como, brincando, lhe
chamavas – mas faltava-te o grego, e não te consentia o ânimo essa lacuna.
Fiquei
sempre, é certo, na dúvida, mas pendendo muito para a convicção, de que
estudaste o grego para mais conscienciosamente traduzires as “Odes de
Anacreonte».
A Tua Boca
A tua boca vermelha,
A que devo compará-la?
Doçura… o favo da abelha
Tem menos que a tua fala.
A tua boca! Ao beijá-la,
Toda a aminha alma ajoelha!
Foge da Terra… abala…
Em teu lábio Deus se espelha.
Mas não é por ser tão linda
(Formosura, o tempo a leva!)
Não é pela graça infinda,
Que atua boca me enleva,
Mas porque não mente ainda,
Coisa rara em filha d’Eva.
Luís Calado Nunes
«Quem
me incitou a colecionar Bordalo, a até, como lenitivo a dores inenarráveis, a
constituir e fundar o “Museu Rafael Bordalo Pinheiro”? Tu, sempre tu.
Foste
sempre um admirador de Columbano. O “Museu Rafael Bordalo Pinheiro” expõe duas
dezenas de fidelíssimas reproduções, devidas à tua proficiente e inesgotável
paciência. Mestre Columbano, examinando uma delas, proferiu esta frase: “mas
isto não é uma cópia, é uma pura falsificação!” Quis, decerto, exprimir o rigor
pacientíssimo com que havias copiado o grande actor Brazão no “Fura-vidas”.
De
ti possuo emolduradas e no álbum algumas caricaturas.»
Provérbios
Não recuses abrigo
nem ao teu inimigo;
que a árvore também
não nega sombra a quem
pretende derrubá-la.
Fase por imitá-la.
*
O
bom nome é um amigo
de
uma lealdade rara;
na
solidão do jazigo,
nem
ali nos desampara.
*
A
mão que pede está
por
baixo da que dá;
e
nisto claramente se descobre
a
situação do rico e do pobre.
*
A
flor espalha o seu suave aroma,
segundo
a direcção que a brisa toma.
Porém,
a alma, de virtude cheia,
Dá
seu perfume a tudo que a rodeia.
*
Estuda,
aprende e verás
a
força de que dispões;
contra
os soldados da Paz
pouco
valem os canhões.
Luís Calado Nunes
«Foi
essa precoce multiplicidade de aptidões admiráveis, talvez, que produziu um
grave erro na tua vida: hesitação na escolha, depois escolha errada.
Tu
nasceste Artista, meu Luís, e, se chegaste a ser um proficiente, um ótimo
professor, sabendo impor pela bondade a mais perfeita disciplina, e, pelo
exemplo, o maior amor ao estudo e ao saber, foi porque: não podias ser medíocre
em nada, nem mesmo no mister mais antípoda da tua vocação, das tuas tendências,
da tua devoção. E foste um professor exemplar, devotíssimo.
É
que havia em ti, inato, um sentimento nobre, belo e raro, hoje em dia: o que
nos leva a cumprir, em tudo, e sempre, o nosso dever.»
De Musset
Podemos esquecer uma
entrevista,
que nos foi concedida… uma
conquista…
um remorso… o dia em que
nascemos…
dinheiro que emprestámos!...
Esquecemos
a companheira, amigos bons,
leais,
o cão que nos estima; ainda
mais:
pode enfim apagar-se da ideia
o céu da nossa pátria, a nossa
aldeia…
E o ancião que a Morte já
reclama,
pode esquecer-se até como se
chama!
Nunca, porém, o louco, o
moribundo,
o que perde a razão, ou deixa
o mundo,
poderá esquecer a voz daquela,
que primeiro lhe disse esta
singela,
meiga frase, tão pura no
intuito,
proferida em segredo: «Amo-te
muito»!
Luís Calado Nunes
«Em
Santarém, lograste, finalmente, um sossego relativo, aparte a tua saudade de
Lisboa, das livrarias, dos alfarrabistas, a Feira da Ladra… e do mais!...
Com
todas as condições extraordinárias de talento e de trabalho, que te
distinguiram, morreste, e somente dois jornais de Lisboa se referiram, em
poucas linhas, à tua personalidade, porque o correspondente de Santarém as escreveu!
Isto é revoltante.»
P.S. – Mal decorrido um mês, após a tua desoladora morte, deu-se o óbito
dum equitador. Os jornais, publicando-lhe o retrato, deram largas às
condolências… Corolário: nesta bela sociedade, mais vale ensinar cavalos do que
preparar cérebros para a futura emancipação de Portugal!...»
* Excertos da “Carta Para o Outro Mundo – A Luís
Calado Nunes (Esboço biográfico)” – Cruz Magalhães
Ruky Luky
É interessante que neste dia 5 de Outubro, dia comemorativo da implantação da República, o Rui vá, ao baú buscar, para a luz do dia esta figura aldeana, de que Montijo muita se devia orgulhar, mas que, infelizmente quem tem a obrigação de o fazer não o faz. Há uma grande falta de respeito pelo passado, e daí está a resultar um desprezo imenso pelos valores do presente. Vivemos uma época de compadrio e de mísero oportunismo e daí resulta todo o estofo do relacionamento social vigente. Acima os homens bons desta cidade, sejam do passado ou do presente e se forem poetas, ainda melhor, porque se exprimem de forma ainda mais bela. Parabéns ao Rui, um homem que está ao serviço do bom nome de Montijo.
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