sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

O Carnaval em Montijo


Paródia ao Comboio de Alcochete no Carnaval de 1953

Se não há uma tradição castiça comemorativa do carnaval, em Montijo, houve, ao longo do tempo, um modus operandi próprio de cada época, que se foi alterando ao ritmo da evolução política, social e económica, e a que Aldeia Galega do Ribatejo não ficou imune.
Em meados do século XIX, o Carnaval era assinalado de um modo indecoroso e chocante e, por vezes, com contornos porcos e brutais.
Naquela época, foram proibidas pelo Administrador do Concelho as máscaras indecentes ou obscenas e ofensivas da moral pública e da religião do Estado e que os mascarados conservassem as máscaras no rosto além das vinte e duas horas. A proibição administrativa abrangia também o «arremesso de ovos, naturais ou cheios de farinha ou de qualquer outro ingrediente», assim como o arremesso de água, laranjas ou outros objectos, nomeadamente, bombas, estalos «e outros quaisquer brinquedos» que além de incomodar podiam prejudicar os transeuntes. Em 1897, face aos abusos, o Administrador do Concelho determinou que só era permitido atirar alfaces ou tremoços para os carros que transitassem.
O Carnaval era “feio, porco e mau”. Para a rua saiam grupos de homens e rapazes fazendo alaridos e proferindo gritarias e palavras obscenas, à medida que iam sujando as portas com cal, sangue de porco ou imundícies.
O Carnaval era também um momento caracterizado pela de emanação espontânea da crítica aos costumes concretizada nas cégadas que se representavam pela vila.
Os mascarados manifestavam-se na rua e nas associações culturais e recreativas bailava-se animadamente.
No início do século XX, o «antigo folião, estroina e porco (carnaval)» confronta-se «com o novo (carnaval), o das flores, o civilizado, o elegante, o espirituoso e asseado».

                                                                          Carnaval 1953
Em 1903, um jornal local noticiava: «Este anno o carnaval esteve animadíssimo em Aldegallega! O tiroteio de feijões, pós de goma e “cocotes”, com quanto fossem affixados editaes prohibindo essa forma estúpida da diversão carnavalesca, todos usaram por ella, como nos annos anteriores, com o maior desrespeito pelas autoridades. Os carros, que eram muitos e alguns gostosamente enfeitados, atropelavam-se nas ruas havendo então “ataques furiosos”, como se tratasse de uma verdadeira batalha (…). Máscaras apenas vimos boas cinco. A não ser as tradicionais alcoviteiras de pacote e lenço e mandongas, nada mais se viu.
Os bailes effectuados no Novo Club e Sociedade 1.º de Dezembro estiveram concorridíssimos.»
Os trongas ou mandongas são as únicas figuras típicas do carnaval aldeano, que reinarão até ao final do século XX, embora com o trajo actualizado à época.
No início do século XX, os «tradicionais trongas (eram) tipos descalços, de ceroulas pelos joelhos e um barrete com buracos a servir de máscara e outros com a cara mascarrada.»
Por volta de 1908, começaram a ser organizadas paródias carnavalescas que concorriam com as “cégadas”.
Em 1911, o Ministério do Interior passou a considerar feriado o dia de Terça-feira de Carnaval.
Carnaval de 1953
Em 1913, relatava um jornal local: «(O Carnaval) trouxe-nos máscaras de graça e paródias interessantes, agradando as tropelias dos foliões e os esgares dos jograis. Há bastantes anos que o carnaval em Aldegalega não era tão divertido. Os bailes realizados no Aldegalense Sport Club, Musical Club Alfredo Keil e Sociedade Filarmónica 1.º de Dezembro estiveram animadíssimos, o que deixa ver que Aldegalega se divertiu, embora isso desgoste àqueles que teimam em isolar-se numa doentia ou hipócrita saudade do passado.»
A nova realidade social marcada pela I Guerra Mundial, pela Grande Depressão e pela II Guerra Mundial e, no plano, também pela Revolução de 1926 e a instauração do regime que veio a ser conhecido como Estado Novo foram moldando também o Carnaval, toldando-lhe a espontaneidade e a graça e a crítica populares e remetendo-o para o interior dos salões de baile.
Em 1916, «o carnaval não foi tão porco como de costume e teve algumas máscaras de gosto. Os bailes do Aldegalense Sport Club, Sociedade Filarmónica 1.º de Dezembro e Musical Alfredo Keil estiveram animados.»
Em 1920, já, «a parte alguns bailaricos, o carnaval passou, nesta vila sem que se desse por ele.»

                                                                            Carnaval 1953
                                                                  
E em 1922, «passou já, felizmente, o Carnaval em Aldegalega. A não ser a animação de alguns bailes, o carnaval limitou-se ao aparecimento de alguns grupos sem graça e mandongas que dão bem a triste nota da época que finda.»
Em 1930, o Carnaval é uma festa celebrada, sobretudo, nos salões, onde os bailes decorriam com grande entusiasmo, em todas as colectividades, durante os três dias, «dançando-se animadamente, em qualquer dos dias, até ao romper do sol.»
Em 1940, noticiava-se: «Sem interesse o carnaval nas ruas. Nas colectividades animação bastante.»
Em 1943 é proibido oficialmente a comemoração pública do carnaval, reduzindo-se as celebrações aos bailes das colectividades, com os costumados bailes de máscaras para sócios e famílias.
O Carnaval tornou-se então, em Montijo, «quase invisível», e «cada vez mais insípido e menos folgazão.»
Porém, em 1948, o grupo “Os Comilões” resgatou o Carnaval dos salões, afivelou-lhe a máscara da alegria, passou a invocar e a orar ao “Santo Baco” e a organizar, anualmente, a devota “procissão do Santo Comilão”, que terminava com a “bênção” dos infiéis nas águas do Cais dos Vapores. Na quarta-feira de cinzas, à tardinha, saía o chorado “Enterro do Bacalhau”, cortejo fúnebre para alegria dos vivos.
Carnaval de 1953
Os “Comilões” ignoraram as normas e passaram, com ousadia, a respeitar a sua própria regra cerzida na velha tradição do Carnaval “feio, porco e mau”. Não lhes amedrontou a Ditadura, tremeram alguns democratas com a crítica contundente e sem piedade a certos “costumes”.
A iniciativa de “Os Comilões” e a conjuntura cultural, política e económica, que caracteriza o início da segunda metade do século XX serão o húmus de novas iniciativas carnavalescas, a que Montijo iria assitir.
Em Fevereiro de 1952, noticiava a Gazeta do Sul: «Decorreu com muita animação, na nossa vila, a quadra carnavalesca, talvez mesmo numa animação desusada. Se surgiram as inevitáveis pessoas de mau gosto, os habituais e imprescindíveis homens disfarçados em mulheres e mulheres disfarçadas em homens, notaram-se também coisas interessantes – como um coche ocupado por altas figuras da realeza – e é pena que Montijo, uma terra com possibilidades de organizar cortejos próprios da quadra, a exemplo do que se faz em Torres Vedras, Loulé, Olhão, Portimão, na capital e em muitos outros sítios, nada se proponha fazer.»
No ano seguinte, a Comissão das Festas Populares de S. Pedro organizou um corso carnavalesco com o intuito de animar a vila, servir de atracção turística e contribuir para a projecção e engrandecimento das festas de S. Pedro, que davam os primeiros passos com o novo figurino.
O comboio de Alcochete em Montijo

No ano seguinte, «a nota principal do Entrudo foi fornecida pelo corso carnavalesco que a Comissão Organizadora das festas de S. Pedro levou a cabo no Domingo e na Terça-Feira Gorda. A Avenida dos Pescadores registou enorme influência de público(…).»
As realizações carnavalescas da Comissão de Festas esgotaram-se naquelas duas iniciativas. Segundo Ruy de Mendonça, «metido à força nas salas de bailes das colectividades ou associações. Encaminhado pela Polícia para as casas de espectáculos. Retirado da rua pela força do destino, o Rei Momo terminou ingloriamente o seu reinado.»
Com o decorrer dos anos, o movimento das máscaras ou brincadeiras e cégadas tornou-se insignificante e o «carnaval nas ruas do Montijo resumiu-se aos grupos de crianças passeando com as suas famílias e a meia dúzia de engraçados, alguns sem graça nenhuma.»
Em 1988, a Comissão das Festas Populares de S. Pedro voltou a organizar o cortejo carnavalesco, que percorreu a Avenida dos Pescadores e a Praça da República. O sucesso alcançado foi de tal monta, atraindo milhares de visitantes, que a Comissão de Festas se viu obrigada a escolher novas artérias para o desfile. Instalou-se, então, um “sambódromo” em redor do Parque Municipal Carlos Hidalgo Loureiro – avenidas Dr. Paulino Gomes, Luís de Camões, D. Afonso Henriques e João XXIII.
Em 1988, a Comissão das Festas Populares de S. Pedro organizou um corso carnavalesco

Seguindo o figurino do carnaval brasileiro, a “Comissão de Festas” passou a contratar “escolas de samba” dos concelhos vizinhos e fanfarras, encomendou carros vistosamente engalanados e contou com a colaboração sempre pronta dodo grupo «Os Comilões» e de outros grupos locais, que se associaram ao corso.
Montijo era então visitado, do domingo e na terça-feira, por, milhares de forasteiros, que enchiam as ruas da cidade, faziam transbordar o Parque Municipal, entupiam as artérias de Montijo, animando exuberantemente a cidade e contribuindo fortemente para os cofres da Comissão das Festas Populares de S. Pedro.
O corso passou a apresentar a “Rainha do Carnaval de Montijo”, contratada entre actrizes, cantoras ou outras figuras mediáticas. Pela animação que deu ao carnaval, pelo pragmatismo que emprestou à figura de “Rainha do Carnaval”, pela empatia que estabeleceu com a população, e, sobretudo, pela projecção que deu ao Carnaval de Montijo, é justo que se saliente o nome da cantora brasileira Simara.
As bem sucedidas realizações dos primeiros anos deixaram-se entediar por terem apostado num tipo de cortejo muito semelhante à “Batalha de Flores, o que provocou uma pequena queda de assistência. Apesar disso e por uma vez ou outra a chuva ter estragado os planos dos foliões, a festa não deixou de corresponder aos interesses e objectivos dos seus organizadores e continuou a atrair milhares de visitantes. o tempo invernoso.
As celebrações em nome do “Rei Momo” visavam obter receitas para a organização das Festas de S. Pedro e apresentarem-se como cartaz turístico da cidade, objectivos que foram plenamente atingidos graças ao empenho da Comissão das Festas e a colaboração da Câmara Municipal.


Onze anos passados, o novo executivo municipal prometeu implementar um novo tipo de festejos, afastando o figurino brasileiro, resumindo as comemorações, em 1999, a folguedos sem qualquer expressão, na Praça da República.
No ano 2000, face ao rotundo fracasso das comemorações do ano anterior e à crítica popular, a câmara municipal organizou um desfile com carros alegóricos em representação das freguesias e das colectividades, contratou um grupo de música, que fez o papel de “Reis do Carnaval”, concebendo um corso sem brilho nem chama, arremedo dos corsos carnavalescos a que Montijo se habituara a assistir. Faltou ao novo figurino a seiva da organização e da animação populares.
Assim se liquidou o Carnaval de Montijo.
“Os Comilões” com toda a sua garra continuaram a dar ao “Rei Momo” a irreverência de que é merecedor, mantendo a viva chama da tradição do carnaval mordaz, satírico, acutilante e insolente. Os “Comilões” não resistiram ao tempo e com eles feneceu também o carnaval, na primeira década do século XXI.
Mas “Os Comilões” merecem outra história.
Nota de Agradecimento à amizade do senhor António Carregosa, que me cedeu as fotos do Carnaval de 1953.
Ruky Luky

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