Amadeu de Moura Stoffel, à esquerda, e Joaquim Serra foram dois intelectuais que agitaram o panorama cultural de Aldegalega do Ribatejo, na década de 20.
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«Não fazia
ideia que o Joaquim Serra era um ateu tão ferrenho e tão contra a religião.»
Jubylee
«É preciso
conhecer o homem e o mundo que o rodeia. O que está em causa é a sua
capacidade de raciocínio, a sua inteligência e profundidade de pensamento.
Joaquim Serra cresce e vive em plena república jacobina e anti-idólatra. Bebe
toda a sua filosofia de vida sob a inspiração de Guerra Junqueiro. Morre
muito novo sem hipótese de aferir as suas ideias e pensamentos filosóficos.
Se tem vivido mais que 25 anos poderia ter reformulado algum do seu
radicalismo anti-religioso. Ficaremos sempre sem o saber. Temos de admirar,
concordemos ou não com a sua linha de pensamento, que um miúdo com 13 anos
tivesse uma tal capacidade de expressão idealista. No meu ponto de vista o
grande valor intelectual de Joaquim Xavier Serra é no campo das ideias e só
secundariamente pode ser observado como poeta. É uma opinião, não é um dogma.»
Joaquim Carreira Tapadinhas
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«Ou este povo hoje muito adeantado politicamente faz
echoar em todos os recantos do paiz a palavra Liberdade demonstrando assim o
seu progresso cívico, ou baqueará sancionando a suprema affronta com que
pretendem esmagal-o — o que é inevitável.» in (0 Domingo — Semanário Repubbcano
Independente — Aldegalega 03-11-1907),
«Faleceu, no dia 18 do corrente, o sr. Pedro Piloto, a quem o povo tratava por Mestre Pedro Calafate. ( ... ) Era um republicano da velha guarda. ( ... ) Era tão arreigada a sua convicção e a sua fé na República, que quando do seu advento, ele disse ao autor destas linhas que a implantação da República, para ele, representava uma fortuna.»
No mesmo sentido, contava outro jornal local que um aldeano de boa cepa revolucionária, abordara, certa vez, o Dr. Celestino de Almeida, dizendo-lhe:
«Se V. Exa. com a sua lanceta de médico abrisse o coração de todos os habitantes de Aldegalega, em todos encontraria gravada a palavra República.»
Muito cedo se fizeram ecoar em Aldegalega os ideais republicanos. Em meados do século XIX, o Governador Civil de Lisboa chamava a atenção do Administrador do Concelho para os desmandos praticados por anarquistas, que faziam os maiores excessos, «desmoralizando e desvairando a opinião pública», e que proferiam publicamente os vivas e os hinos da revolta.
A chama do novo ideal encontrou em Aldegalega o ambiente
profícuo à sua propagação porque, como escreveu o Professor Dr. A. M. de Oliveira
Marques, «republicano,
por 1890, 1900 ou 1910, queria dizer ser contra a Monarquia, contra a Igreja e os Jesuítas, contra a corrupção política e os partidos monárquicos, contra os grupos oligárquicos.
O Republicanismo implicava um regime perfeito do povo para o povo, baseado em completa liberdade, autêntica igualdade e perfeita fraternidade sobre a terra.»
Quer pelo ambiente acolhedor às novas doutrinas quer pela proximidade
de Lisboa,
Aldegalega recebeu sempre com hospitalidade e fervor
republicano os grandes
tribunos, arautos do novo regime.
O comício, realizado no dia 6 de
Janeiro de 1907, pela sua
imponência e repercursão na imprensa de Lisboa, obrigou o Presidente da Câmara a convocar uma reunião extraordinária
da edilidade para que fosse aprovado «um voto de protesto contra as doutrinas expandidas no Comício, proclamando nós bem alto que este concelho é, e foi sempre monarchico constitucional, desde que o sistema que nos rege se implantou
no país, e que os habitantes de Aldegalega, possuídos de nobre orgulho,
repellem a acção de vizinhos que pretendem
guiá-los para o mal.»
Apesar do protesto das autoridades, da sua confissão de fé na monarquia e da vigilância reforçada feita à vila, os republicanos não esmoreceram
na difusão dos seus ideais e, em 16 de Fevereiro de 1908, voltaram a realizar, na Praça
de Touros, um imponente Comício, com as presenças de António José de Almeida,
Agostinho Fortes e Cunha e Costa, no qual foi aprovada uma moção em que se exigia «a
revogação de toda a obra da ditadura (de João Franco)».
Quinze dias após o regicídio, Aldegalega gritava com mais força ainda Viva a República.!
Se a Câmara Municipal, reunida extraordiriáriamente no dia 3
de Fevereiro de 1908, aprovara, por unanimidade, depois de ter ouvido respeitosamente de pé, o voto de profundo pesar por tão
dolorosa perda para a Nação, apresentado pelo seu presidente, «em vista do atentado horroroso de que foram víctímas Sua Magestade El Rei o Senhor D. CarIo I e Sua Alteza Real o Senhor D. Luiz Fillippe, o jornal aldeano “0 Domingo”, de 9 de Fevereiro de 1908, informava todos os concidadãos que «no estabelecimento do nosso, amigo e correlegionário, sr.
António Vicente
Nunes Marques, na Rua Direita, está aberta subscrição a
favor dos filhinhos do professor Buíça, ferozmente assassinado em Lisboa,
pela polícia, no dia um decorrente.
É Justo
que todos concorram com o seu óbulo.»
A mesma edição do jornal analisava o regicídio do modo que, parcialmente, se descreve:
«Foi ainda ele (João
Franco) que matou D. Carlos, o príncipe D. Luiz, o professor Buíça e dois caixeiros Alfredo Luz Costa e João Salino da Costa.Pelas suas medidas odiosas e asfixiantes espalhou uma atmosfera irrespirável que os tiros do Terreiro do Paço vieram dissipar.
Fera com figura humana, tarado hereditariamente, envaidecido pela posse do mando que um rei imprevidente e mal orientado lhe confiou, João Franco ignorando lições ou esquecendo as lições de história onde se pode ler sempre e iarvariavelmente o fim dos verdugos dos povos, só semeou ódio, lágrimas e a morte.»
Nove anos mais tarde, ao recordar o evento, “0 Domingo”, na sua edição de 4 de
Fevereiro, considerava que «o acto deste dia (1 de Fevereiro) foi a cólera da nação encarnada em Costa
Buíça e nos seus companheiros de acção. ( ... ) Costa e Buíça não foram criminosos sedentos de sangue, nem foram levados
por uma minoria que queria, também, oprimir.
Levou-os a cólera de quem queria
liberdade, liberdade e só liberdade.»Em 1908, os republicanos d Aldegalega põem a correr «à assinatura de quem quiser, um protesto cujo fim é substituir o nome do Conselheiro João Franco a uma rua desta vila, por outro ainda que seja primitivo Rua Nova.»
Mudou-se o nome à rua e, em de 30 de Novembro de 1908, mudou-se, também, a vereação da Câmara Municipal, com a eleição de Manuel Ferreira Giraldes, Francisco Freire Caria Júnior, José d'Assis Vasconcelos, Álvaro Tavares Mora e José Cipriano Salgado Júnior, do Partido Republicano Português. Manuel Ferreira Giraldes tornou-se no primeiro presidente republicano da Câmara Municipal de Aldegalega, na fase final do regime monárquico.
Em Janeiro de 1909, Aldegalega prestava “uma homenagem de carinhoso afecto e de entusiástica
admiração pelo talento, elevação cívica e dedicação patriótica de António José de
Almeida, conferindo o seu nome à então Rua José Maria dos Santos, [hoje, Avenida dos Pescadores].
Na primeira reunião da Edilidade, em 10 de Outubro, já depois de implantada a República, foram homenageados Cândido dos Reis, Miguel Bombarda, Machado dos Santos e Teófilo Braga, passando os seus nomes
a constarem da toponímia da Vila. Antes da reunião, o Presidente da Câmara enviara ao Presidente do Governo da República o seguinte telegrama:
«Em nome do povo de Aldegalega— o formidável baluarte da democracia, e em cuja Câmara Municipal tremulou desde o início da revolução a bandeira da República, saúdo em V. Exa. a Pátria libertada pelo esforço generoso de todos os portugueses que cooperaram na obra gloriosa da sua redenção.»
Com a implantação da República acirrou-se a luta partidária, extremou-se o debate
de ideais, quantas vezes
transformado em confronto físico, intensificou-se combate ariticlerlcal. Dois partidos
vão dominar a cena política de Aldegalega: o Partido Republicano e o Partido Evolucionísta, embora coexistam outros de
menor expressão, como o Partido Socialista, e meras tendências organizadas.
António Rodrigues Caleiro,
através do jornal “Evolução”, e Paulino Gomes, com o apoio do jornal “A Razão” trocarão picardias e provocações pessoais, na manifestação mais
decadente do debate republicano, defendendo
aquele o Partido Evolucionista e este o Partido Republicano.
As vicissitudes porque passou o
regime foram vividas, intensamente, em Aldegalega. Vivia-se com a vontade indómita de defender a
República. Sucediam-se as manifestações
e bem se poderia dizer que Aldegalega tinha o pé
na rua e o ouvido em Lisboa.
«Em Aldegalega ouvia-se nitidamente o troar do canhão, por vezes com uma violência
nunca experimentada em ocasiões de outros movimentos... Todo o povo desta vila se achava sob uma formidável
excitação, procurando por todas as formas, receber informações do que se passava. Um grupo de republicanos
aluga um barco à vela, à falta da carreira
do vapor, e segue, para o campo da luta(...)
Pelas 21 horas chegou um telegrama oficial em que se
afirmava que os revoltosos monárquicos tinham abandonado vergonhosamente as suas posições, sendo completamente derrotados pelas tropas republicanas, pelos marinheiros e pelos civis. A alegre notícia correu veloz por toda a vila. Subiram imediatamente ao ar inúmeros foguetes, ao mesmo tempo que a
Câmara Municipal iluminava a sua fachada e várias casas particulares hasteavam bandeiras
e a Banda Democrática improvisava uma
manifestação.» Assim relatava o jornal “A Razão” o comportamento do povo aldeano face ao movimento
restauracionista de Janeiro de 1919.
Após a sufocação da revolta, democráticos,
evolucionistas e unionistas irmanaram-se na
sagrada união dos partidos da República, para defenderem o regime, mas a “perenidade da união”,
então garantida, foi esquecida algum tempo depois. As acusações mútuas reacendem-se e findam-se em 1926.
Com o advento da República
surgiram, em Aldegalega, as primeiras associações partidárias: O Centro Republicano Democrático e o Centro Evolucionista 31 de Janeiro, que fomentam o debate de ideias.
É animada a publicação de jornais. O arauto dos
novos tempos foi o
jornal “0 Domingo”, editado desde 1901 pelo republicano
José Augusto Saloio, embora só mais tarde viessa
assunir declaradamente a sua feição republicana.
Com a República surgiram novos
jornais, ligados às várias
correntes partidárias: “Evolução” (1913), do Partido Evolucionista e propriedade do Centro Republicano Evolucionista 31 de Janeiro; “A Razão” (1915), do Partido Republicano
e propredade do Centro Republicano Democrático; “A Liberdade” (1921), dirigido por Manuel
Paulino Gomes, figura destacada do Partido Republicano local. Em 1930, é editado o jornal “Montijo —Semanário republicano
de propaganda e defesa dos interesses
de Aldegalega” que, de acordo com os novos tempos políticos, acabou por suprimir a expressão republicano.
Consumia-se a chama jornalística
republicana. O canto do cisne
da imprensa local é entoado pelo jornal “A Ideia” (1931), de Joaquim Serra. Não resistiu um ano. Perdeu-o a morte do seu
fundador, estrangulou-o as malhas da
censura.
Os tempos não
corriam de feição para a exaltação dos ideais da
liberdade e da justiça. No novo panorama, criado a partir de 1930, abra-se uma
honrosa excepção à “Gazeta do Sul”.
No plano cultural, apesar de já estarem fundadas a Sociedade Filarmónica 1.° de Dezembro e a Academia Musical União e
Trabalho, de Sarilhos
Grandes, foi a Banda Democrática 2 de
Janeiro, fundada em 1914, por militantes do
Partido Republicano, que marcou a 1.ª República, em Montijo.
Além destas, tomaram ainda corpo as seguintes associações de carácter laboral, cultural ou de selidariedade
social: Junta Local do Livre
Pensamento, Sindicato Agrícola de Aldeia Galega, Associação de Classe das Operárias Chacineiras, Associação de Classe dos Trabalhadores Rurais da Jardia, Lançada e Sarilhos Grandes,
Associação de Classe dos Trabalhadores Rurais de
Canha, Associação de
Classe dos TrabaIhadores Rurais Aldegalenses, Federação Operária AIdegalense,
Associação dos Operários da Indústria Corticeira, Cooperativa União dos
Trabalhadores Rurais Aldegalenses, Sociedade Cooperativa União Piscatória e o Musical Clube Alfredo Keil. Estas
associações, além de fixarem como objectivo a luta pelos interesses profissionais e sociais dos seus associados, preocupavam-se, também, com a divulgação cultural.
Luta contra a tirania, amor à
liberdade, anticlericalismo são princípios da República que irão imbuir Joaquim Xavier Serra.
Outros dois outros acontecimentos irão influenciar também o jovem aldeano: a Revolução de 28 de Maio de 1926 e a
situação na Alemanha, após a I Guerra Mundial.
No campo intelectual
será indelevelmente marcado por Antero de Quental.
Mas tudo isto são
contas de um outro rosário.
Ruky Luky
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