Romagem a N.ª Sr.ª da Atalaia (final do séc. XIX - princ. séc. XX)
A impetuosa voragem do tempo varreu da memória dos homens a data da aparição da imagem de Nossa Senhora, entre os pinheiros, na colina da Atalaia, no concelho de Aldegalega do Ribatejo.
O Padre Frederico Ribeiro da Costa, Capelão que foi da Atalaia no século XIX, aventa que poderá ter ocorrido no século XIII, mas sendo homem prudente e estudioso sensato, reconhece que é «suposto porém não se poder averiguar a verdadeira origem da aparição da imagem, todavia não nos resta dúvida de que ela é de uma grande antiguidade. Dos tempos mais chegados a nós temos memórias da sua existência no ano de 1507, segundo o compromisso do círio da Alfândega de Lisboa (...).»
Ao Santuário de Nossa Senhora da Atalaia ocorrem ainda hoje, com data marcada, peregrinos organizados em círios, demandando a protecção da Virgem, rogando em prece ou agradecendo uma graça concedida.
Num só credo traduzido em plúrimas manifestações das suas “usanças” ali se foram encontrando, no caminho dos dias e no volver dos séculos, os homens de todas as cores com que Deus coloriu o mundo e fizeram com os Portugueses Portugal.
A Igreja, sempre contraditória no que tangia à condição dos escravos, não deixou, contudo, na sua acção evangelizadora, pelo menos desde o século XVI, de incitá-los à participação em confrarias, muitas delas dedicadas a Nossa Senhora do Rosário, uma das protectoras favoritas dos negros.
Em Aldeia Galega do Ribatejo, cuja confraria mais importante era, na época, a Santa Casa da Misericórdia, é mister afirmar-se que os negros estavam excluídos de participarem como irmãos. É a conclusão que se alcança lendo o requerimento de admissão de António Marques, e outros de igual teor, mareante, morador na vila, redigido em Abril de 1679, que, in fine, reza: «o suplicante é cristão velho sem raça alguma de judeu, mouro e mulato ou de outra infecta nação que é contra o compromisso, pede a Vossas Mercês que sejam servidos mandar informar e achando ser capaz o aceite por irmão.»
Se se não conhece nenhuma confraria de negros instituída em Aldeia Galega do Ribatejo - existiram em Lisboa e no Brasil -, sabe-se, no entanto, que, desde o século XVIII, a vila tomou conhecimento da existência de círios constituídos exclusivamente por negros ou mulatos, que por aqui passavam a caminho da Atalaia.
A preparação para a romaria começava meses antes da data aprazada com a realização do peditório pelas ruas de Lisboa, ao som de instrumentos tradicionais e de coloridas danças, que a aculturação e a evangelização não conseguiram subtrair (ou quiseram respeitar) ao seu património, e que eram também postas em evidência nos dias festivos.
No dia da peregrinação, partiam de barco para Aldegalega do Ribatejo, atravessando então as ruas poeirentas, enchendo-as de alegria com as suas danças e cantares, a caminho da Atalaia.
Os Círios dos Pretos terão sido constituídos no século XVIII, em Lisboa. Concorriam ao Santuário de Nossa Senhora da Atalaia “O Círio dos Pretos Crioulos de Lisboa”, que, segundo o Padre Frederico Ribeiro da Costa, «concorria a festejar a imagem de Nossa senhora de Atalaia no terceiro domingo de Setembro (...). Compunha-se apenas de bandeiras; a sua romaria era feita da mesma forma que o círio dos pretos do bairro alto da cidade de Lisboa.»
Espreitemos então “O Círio dos Pretos do Bairro Alto”, do qual se sabe um pouco mais.
A caixa do círio, que ainda no final do século XIX jazia no corredor da sacristia, continha uma preciosa informação: «Este sírio he da confraria dos homens pretos do bairro alto, em o anno de 1743.» Acompanhados de gaitas de foles “e de mais instrumentos próprios da sua antiga usança”, os romeiros festejavam no terceiro domingo de Setembro, tendo deixado de concorrer a partir de 1840.
Noutro dos bairros populares de Lisboa, se instituiu o “Círio dos Pretos do Bairro de Alfama”, cuja data de constituição se ignora e que terá deixado de concorrer na primeira metade do século XIX, visto que, em 1839, o «Sírio de Alfama foi renovado pelos homens brancos.»
Quedam-se por aqui as notas coligidas pelo Capelão de Atalaia e devemos assinalar que, no século XIX, o número de negros, em Lisboa, ainda era significativo – as romarias eram feitas “com muitos romeiros” – e concorriam do mesmo modo que faziam os outros círios, embora usando “os instrumentos próprios da sua antiga usança.”
A Revolução Liberal, que eclodiu em 1820, foi a aurora que anunciou que o fim dos degradantes dias de cativeiro estava próximo.
A Constituição de 1822, consequência do liberalismo triunfante, atribuiu a cidadania aos “escravos que alcançarem carta de alforria”, a Carta Constitucional de 1826 aboliu “a marca de ferro quente e todas as mais penas cruéis” e, dez anos mais tarde, D. Maria II, em 10 de Dezembro, aboliu o tráfico de escravos, primeiro passo significativo para a abolição da escravatura dado com a assinatura do Visconde de Sá da Bandeira, que viria a desempenhar um papel de determinante na abolição de tão hediondo regime.
Embora correndo o risco de enfadar os leitores, não resisto à tentação de transcrever, alguns trechos do preâmbulo do decreto promulgado pela Soberana:
«SENHORA! = A civilização da África tem sido nestes últimos tempos o pensamento querido dos sábios e dos filantropos, e não menos o desvelado cuidado dos principais Governos que, no antigo e novo Continente marcham à testa do progresso e promovem o melhoramento da espécie humana; enquanto Portugal, que durante séculos havia trabalhado nesta grande obra, hoje, em vez de a promover, lhe põe obstáculos (...). Sobre vários feitos de África, como em tantos outros, os Portugueses têm sido caluniados por historiadores modernos (...). E todavia, não há um só documento em toda a primeira época de nossos descobrimentos, que não prove que o principal, e quase único intuito do Governo Português era a civilização dos povos pelo meio do Evangelho. O comércio foi secundário, posto que meio civilizador também; e a dominação foi uma necessidade consecutiva, não um objecto.
Os erros de doutrina religiosa, e o vício das medidas políticas, eram do Século, não dos homens. (...)
O infame tráfico de negros é certamente uma nódoa indelével na história das Nações modernas; mas não fomos nós os principais, nem os únicos, nem os piores réus. (...) Emendar pois o mal feito, impedir que mais se não faça, é dever da honra Portugueza, e é do interesse da Coroa de Vossa Majestade;(...).
Os naturais da África foram aprisionados e transportados além Atlântico para tornarem rico um imenso país (...).»
Longe ia o tempo em que, no Brasil, frei José Anchieta defendia que «para este género de gente não há melhor pregação do que a espada e a avara de ferro», mas seria ainda necessário percorrer mais de quarenta longos e penosos anos para que se concluísse o caminho que conduziria à abolição da escravatura em Portugal.
Volvamos agora a Aldegalega do Ribatejo...
Corria o mês de Setembro do ano de 1856, quando o Administrador do Concelho de Aldegalega foi informado pelo Governador Civil de Lisboa que, nos termos da Carta de Lei, de 18 de Agosto do mesmo ano, eram “declarados livres, tantos os escravos embarcados nos navios portugueses como os que pertencerem a estrangeiros, e que entrarem nos portos, ou ancoradouros do Continente deste Reino, e das Ilhas Adjacentes.”
Era mais um passo para estancar o comércio de escravos, porque poderosos interesses económicos se sobrepunham às determinações da lei.
Depois do decreto de D.Maria II, ergueu-se um edifício legislativo tendente à total libertação dos escravos em todos os domínios portugueses, que não cabe analisar num artigo deste jaez, que teve a sua cúpula no Decreto de 25 de Fevereiro de 1869, do qual se reproduzem os dois primeiros artigos:
«Artigo 1º Fica abolido o estado de escravidão em todos os territórios da monarquia portuguesa desde o dia da publicação do presente decreto.
Art.º 2º Todos os indivíduos dos dois sexos, sem excepção alguma, que no mencionado dia se acharem na condição de escravos, passarão à de libertos e gozarão de todos os direitos e ficarão sujeitos a todos os deveres concedidos e impostos aos libertos pelo decreto de 14 de dezembro de 1854.»
O diploma, que, entre outros ministros, foi assinado pelo Marquês de Sá da Bandeira e por José Maria Latino Coelho, foi promulgado pelo Rei D. Luís.
Longe ia a data, cerca de 1441, em que os primeiros cativos negros, denominados peças, entendendo-se por peça o escravo de 15 a 25 anos, cuja altura ideal era de 1,80m, tinham chegado a Portugal, ampliando significativamente o número de escravos, tornando-os indispensáveis nos trabalhos domésticos e agrícolas, porque “o trabalho é do negro e a fama é do branco”, com nefastas consequências para o trabalho livre, acabando por não se desenvolver no País o gosto pelo trabalho e pelo progresso.
Decretada a abolição da escravatura, nem por isso se redimiu a dignidade humana dos povos do Sul, porque ali ainda havia quem se não tivesse esquecido do conselho de João Fernandes Vieira, Governador de Angola, que, na segunda metade do século XVII, esclarecia a corte que «É um velho e aprovado costume nunca permitir que um negro levante a mão contra um branco, porque a preservação do reino depende desta obediência e medo.»
.............................................................................................................................................
Na relva luminosa do Parque Municipal do Montijo correm crianças despreocupadas atrás de uma bola, enquanto os pais assistem despreocupados. Falam uns uma língua estranha, outros um português de diversos sotaques e todos, ali na relva, fitando o futuro, não se apercebem que são os lídimos descendentes de todos os povos que um dia, por razões tão diversas, encontraram ou os encontrou Portugal. Ali estão fraternalmente entre portugueses, porque “os erros de doutrina religiosa, e o vício das medidas políticas, eram do Século, não dos homens.” Ontem, como hoje.
E eu parto em direcção ao Cais dos Vapores. Vou pedir ao Tejo que me leve uma lágrima até ao oceano, para que ao beijar a orla desse país quente onde jaz a minha avó negra, também ela filha de escravos, quem sabe?, lhe diga que choro de alegria por saber que não há “escravidão” no mundo capaz de amordaçar eternamente a vontade de o Homem ser Livre e Feliz, apesar dos pequenos tiranos que, dia a dia, nos seus efémeros reinos de fantasia, apenas servem para nos recordar que a Liberdade é uma conquista quotidiana.
Esta narrração é muito interessante e este tema dos Círios já tem sido abordado, com direitos de senhorio pelo nosso amigo Balseiro Dias, que advoga para si o monopólio. É preciso cuidado, porque ele pode aparecer a reclamar e nessa coutada, em sua opinião, só ele caça. Também o Luis Marques, após o Balseiro, tratou dos Círios de Atalaia e este não pareceu muito confortável. De qualquer modo, é necessário desenterrar todos estes tesouros, e não deve ser levado em conta este meu àparte. Parabéns.
ResponderExcluir