quarta-feira, 14 de março de 2012

A Escrava Mulata do Padre Francisco Alves

«E algumas viúvas honradas que compravam algumas daquelas escravas, umas recebiam por filhas, outras deixavam as suas riquezas em testamento, pelo que se mais tarde se casavam, avendo-as de todo por livres.»

Gomes Eanes de Zurara

«Declaro que tenho três escravos por nomes um Jerónimo outro Domingos outro por nome Francisco…», assim começa o Padre Beneficiado Francisco Alves a referir-se aos escravos que possuía, no seu testamento. E, como se fosse a mão do Destino, determina-lhes o futuro:
«Deixo Domingos forro e isento e livre com a condição que se agasa-lhe com minha ama Eiria Duarte e a servirá um ano e depois de acabado o dito ano poderá fazer dali o que quiser e ficar livre de todo e o outro escravo por nome Jerónimo deixo forro com a condição que sirva o Prior Simão da Costa e um ano passado fique logo livre e forro e poderá fazer de si o que lhe bem vier e servindo estes dois escravos como eu mando deixo que no cabo do ano servindo eles lhes dêem a cada um deles um vestido com que fiquem amparados e um forragoilho roupeta calções um chapéu com esta condição expostos os deixo logo forros sem mais. Depois da minha morte outro escravo de nome Francisco deixo ao Prior desta vila Simão da Costa que dê por ele vinte e cinco mil réis e não o querendo que se venda a quem mais der por ele…»

Dos três escravos do Padre Francisco Alves dois alcançaram a liberdade e a carta de alforria, mas a História guarda o segredo por que Francisco continuou escravo com um preço de licitação de 25 mil reis.

Além destes três escravos, o Padre Francisco Alves era também proprietário de uma escrava, de nome Margarida, mulata, cujo futuro o atormentava e, por isso, a vai dotá-la como se fosse sua filha.

À sua escrava Margarida o Padre Francisco Alves legou como dote de casamento umas casas térreas situadas «na Rua Direita defronte das casas da Câmara e audiência» (presumivelmente onde se localiza a Papelaria Frederico ou a Ourivesaria S. Pedro).

Além deste legado, mais a dotou de carta de alforria e de «dez mil reis em dinheiro e uma cama de roupa que custe outros dez mil reis».

Senhor do destino dos seus escravos, mas ciente da sua efemeridade, o Padre Francisco Alves pedia ao Prior Simão da Costa que, caso viesse a falecer sem que Margarida tivesse casado, que recolhesse «esta mulata enquanto não casar e será obrigada a servir assim e da maneira que a mim me serviu e o mais recolhida que puder.»

Bondosa, a vida, Senhora do Destino, permitiu que o Padre Francisco Alves, “clérigo de missa e Beneficiado que foi desta vila (Aldeia Galega do Ribatejo) ”, viesse a casar a sua escrava Margarida com João Gomes Picado, marroteiro (capataz) das salinas de Aldeia Galega.

Margarida, livre e forra pelo casamento, adopta o apelido Alves, o mesmo do padre que fora seu proprietário, e é aceite socialmente como mulher de João Gomes Picado e assim tratada e respeitada.

O casal, que continuou a desfrutar da amizade do Padre Francisco Alves, viu-se abençoado com o nascimento de uma filha, de nome Maria, que sensibilizou o padre.

No dia 4 de Março de 1613, o Padre Francisco Alves alterou o seu testamento e, sem prejudicar o legado feito a Margarida, passa a dispor a favor de «Maria filha de João Gomes e de sua mulata Margarida Alves vinte colmeias para o seu casamento e vinte cortiços (…)».

Que razões profundas levaram o Padre Francisco Alves a proteger a sua escrava mulata e a dotá-la ricamente para que ela pudesse casar, assim como a Maria, filha da sua antiga escrava?

A preocupação genuína do Padre Francisco Alves pelo futuro de Margarida Alves, que foi sua escrava, e pela filha desta, Maria, numa época marcada por preconceitos e tabus, que história encerrará? Que história de amor levou o Padre a zelar pelo recato e pelo casamento da sua escrava, defendendo-a moral e socialmente?

O Testamento do Padre Francisco Alves não responde. Neste aspecto é cerrado.

Ruki Luki

Um comentário:

  1. A sociedade foi evoluindo e no século XVII, mesmo um homem de Deus, entendia normal possuir escravos. Normalmente, divide-se a nossa sociedade civilizada e cristã, nos diversos períodos da Idade Média e Moderna, em três classes sociais: clero, nobreza e povo. Esquece-se, talvez por pruridos de consciência, que os escravos eram uma parte importante na produção de bens de consumo e de serviços. A escravatura manteve-se por muito tempo e há pouco mais de 100 anos terminou nas colónias de África e da América do Sul. Os costumes e as tradições, têm evoluído para melhorar as relações entre os homens, mas ainda está longe de se estabeleceram princípios que levem ao respeito mútuo. O paraíso na Terra ainda é uma utopia.

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