João Dias - homem truculento, poeta lírico
«Pedi uma voz ao mar
E ao vento para cantar
Meu canto vivo do Povo.»
João Dias
Sobre o cadáver do poeta as palavras fluem rebuscadas, evocativas e, por que não, laudatórias. Logo mais o corpo será pó e nada. Viva, a sua obra evolou-se e determinou-se. Do homem nada resta, do poeta regista-se a obra, cumprindo-se o fado dos que «da lei da morte se vão libertando».
O homem metamorfoseou-se nas máscaras que a vida lhe deu. Se tragédia ou comédia, se drama ou burlesco lhe teciam as grilhetas da vida, libertou-se o estro que lhe definiu o ser: Poeta!
João Dias incomoda – é maldito. A obra se de maldito foi gerada maldita é. Estigmatizada aguarda o tempo de ascensão nas voltas do esquecimento que o tempo dá.A obra poética de João Dias alicerça-se em momentos de tensão permanente entre o homem revoltado, crispado por uma vida tormentosa, e a placidez do poeta que o visita nas horas sombrias de solidão pesada e dolorosa, derramando um intenso perfume lírico.
Se o homem revoltado nos fala do “Alentejo em Carne Viva”, o poeta, inspirado no sofrimento das “dores do pão”, delicia-nos com a palavra burilada de intelectual ciciada ao ritmo do cantar do povo.
«Com palavras de entender» João Dias compôs «o vivo retrato/ do cantar da minha gente.» E é a cantar a sua gente que o poeta se constrói.Nado e criado «nas ondas da sorte» e nos «sustos da morte», o poeta ergueu a pena para lavrar «Searas de versos/ Para cantar Universos/De amor em cada segundo».
João da Conceição Dias é a criança que aos 10 anos começou a trabalhar na fábrica da «Mundet»; é o jovem aprendiz de serralheiro; é o enfermeiro da marinha mercante; é o emigrante na Venezuela e nos Estados Unidos; é o preso político e o preso por delito comum; é o actor e declamador; é o artista de circo; é o pintor; é o decorador; é… As múltiplas personagens que o homem foi compondo não se sobrepuseram à que o hoje o define – Poeta!
Os caminhos sinuosos da vida e os ardis de encontros vários não lhe mancharam a lira.
A poesia de João Dias, urdida em vivências marginais, deixa transparecer a visão universalista do autor - «Sou povo por ter irmãos/Em qualquer lugar da terra» -; a esperança como fanal da vida - «Eu sou povo e canto esperança/De amanhecer tempo novo/Esperança que se não cansa/ De correr atrás do Povo» -; as hosanas ao amor - «O amor é um instante/Pedindo eternidade»; e a permanente insubmissão à regra - «Chamaram-me ovelha negra/Por não aceitar a regra».
João Dias veste de novas palavras do canto antigo para se erguer contra os algozes do «Povo menino mudo/Sem brinquedo e sem balão»; para denunciar a «Terra que está sangrando» e crispar-se por se sentir preso dentro de si e do seu próprio País. Quer-se visceralmente liberto e por isso grita - «Ai esta raiva de ter/Apenas cinco sentidos/Num corpo que quer viver/Sem sentidos proibidos» -; e declara - «Rasguei o manto do mito/E pedi mais infinito/Na urgência de viver» -; e recusa liminarmente «Ser coisa em vez de ser».
Filho de Aldegalega em Montijo morreu. O Tejo correu-lhe nas veias; as fragatas povoaram-lhe os sonhos; o povo foi a sua luta e a sua esperança.
É o poeta montijense mais cantado. Viu os seus versos divulgados, entre outros, por dois dos maiores fadistas, Carlos do Carmo e Rodrigo, e pela grande voz de Montijo, Carlos Pontes, que deram a dimensão do fado aos versos de João Dias.Quem conheceu João Dias ainda hoje o evita.
Insultem-no, apontem-no na praça pública pelos vícios e pecados que terá cometido, enterrem-no no sítio mais profundo do universo, mas, apesar de tudo, a obra de João Dias se fará luz. Como sentenciou o poeta:
«Somos da mesma equipagem
Filhos da mesma família
Se estamos cá de passagemE é tão curta esta viagem
Para quê tanta quezília?»
Ruki Luki
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