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Um “rancho” de Descarregadores de Mar e Terra dedicava-se, como o seu nome indica, às tarefas de carga e descarga dos mais variados volumes, principalmente fardos de cortiça e sacas de cereais. |
É 24 de Abril de 2012.
Amanhã faz 38 anos que Portugal mudou.
Não sei muito sobre os pormenores da história do Montijo.
Mas nasci aqui e sempre aqui vivi.
Fui testemunha das transformações que foram ocorrendo.
Nasci no Bairro Serrano.
Parte da minha infância passei-a brincando na rua. O meu amigo Alexandrino era o meu principal parceiro de brincadeira.
Rondávamos parte do dia junto da taberna do Joaquim Foni, era assim que a conhecíamos. O edifício ainda existe, na que é agora a Rua das Forças Armadas, outrora 28 de Maio.
A taberna era frequentada, durante o dia, principalmente por um “rancho” de Descarregadores de Mar e Terra.
Um “rancho” de Descarregadores de Mar e Terra era constituído por um grupo, mais ou menos homogéneo, de homens que se dedicavam, como o seu nome indica, às tarefas de carga e descarga dos mais variados volumes, principalmente fardos de cortiça e sacas de cereais.
Essas mercadorias chegavam e partiam do Montijo, na sua maioria por via fluvial, em fragatas e batelões, e que depois circulavam na nossa agora cidade até aos seus destinos, em carroças e galeras. As galeras eram carroças maiores, com quatro rodados e puxados por uma parelha de cavalos.
Estamos em finais dos anos 50.
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Vou até à maré, diziam.Ir até à maré significava ir até junto do rio, tentar adivinhar movimento, tentar avistar fragatas ao longe. Talvez isso pudesse trazer trabalho |
Havia um Sindicato dos Descarregadores de Mar e Terra que funcionou muito tempo nessa mesma rua vindo, depois a mudar para a Rua Miguel Pais.
Esses homens trabalhavam quando havia algo para carregar e descarregar. Fora isso, permaneciam na taberna,
Jogavam os mais capazes à sueca, à copa e à bisca de 9. Os outros à ronda e ao “acuso”.
Jogava-se também à bisca de 6 ou de sinais, onde dois “mandantes”, recebiam os sinais dos parceiros e comandavam as vazas. Para nós, a astúcia e os truques estratégicos desses mandantes deixavam-nos fascinados.
Bebiam-se copos de vinho, de aguardente ou “traçadinhos”, uma mistura de aguardente e vinho abafado.
Bebia-se fiado.
O Tio Joaquim, que nunca vi traçar um número, tinha os seus próprios algarismos, constituídos por bolas, cruzes e traços. Nas faces das pipas, a giz, ia registando com a sua grafia a dívida de cada um.
Estes homens ganhavam à peça. Tanto por fardo, tanto por saca, etc.
Quando chegavam ou partiam mais fragatas, ganhavam mais. No inverso, ganhavam menos, ou nada.
Havia um chefe, naquele caso o dono das carroças e galeras, que seleccionava a quantidade de homens necessária ao desempenho das tarefas, contabilizava o que cada um ia acumulando e pagava, normalmente no final da semana.
Nesse dia de receber, parte do dinheiro servia para pagar os fiados e o Tio Joaquim lá apagava a totalidade ou parte das bolas, cruzes e traços de cada um.
Os mais afortunados faziam-se transportar numa bicicleta ou calçavam alpargatas, os outros andavam a pé e descalços.
Existia também uma hierarquia: Os mais velhos e assíduos constituíam o núcleo do rancho. Eram normalmente os que eram mais vezes escolhidos, trabalhando por isso mais vezes, logo ganhando mais. Os outros, ficavam “às deixas”. Se fosse hoje, dir-se-ia estar no fundo da escala social.
Quando as bolas, cruzes e traços do tio Joaquim ameaçavam ultrapassar os extremos das pipas, acabava-se o fiado para o devedor, e ele deixava de jogar às cartas passando a fazer parte, tal como eu e o Alexandrino, do círculo de espectadores.
Eram esse que, por vezes cansados de nada fazerem, se levantavam e saíam.
Vou até à maré, diziam.
Ir até à maré significava ir até junto do rio, tentar adivinhar movimento, tentar avistar fragatas ao longe.
Talvez isso pudesse trazer trabalho.
Talvez pudessem abater parte do fiado.
Talvez levar algum dinheiro para casa e abater também parte do rol na mercearia.
Alguns destes homens foram chamados a combater na guerra colonial.
Outros, subiram na tal escala social e foram trabalhar para as fábricas.
Uma grande parte emigrou, por vezes a salto.
Cresci e brinquei junto a esta taberna.
Conheci estes homens que comigo brincavam e me ensinavam “a escola toda”.
Aprendi a respeitá-los.
Ouço por vezes dizer que antigamente é que era bom. Que havia trabalho para todos.
Havia trabalho, mas não era para todos.
E a miséria era muita.
Vou até à maré, diziam os excluídos do Tio Joaquim.
Mas os tempos eram outros, dirão alguns, em todo o lado era assim!
É mentira.
Muitos dos que emigraram regressavam passados poucos anos com uma vida diferente. Vestidos, calçados e ao volante dos Simcas e Renaults da altura, comprados em segunda mão.
Contavam como foi difícil o início mas como foram apoiados na escolha de uma casa e como dispunham de escolas para os filhos e todo um apoio social para a família.
Senti vontade de falar destes homens nas vésperas de mais um dia 25 de Abril.
Gostava que ninguém mais precisasse de, como eles, “Ir até à maré”
24 de Abril de 2012
Manuel Barrona